Resignação Espírita
José Herculano Pires
Uma das acusações que se fazem ao Espiritismo é a de levar o homem ao conformismo. “Os espíritas se conformam com tudo, – escrevem-nos – e dessa maneira acabarão impedindo o progresso, criando entre nós um clima de marasmo, favorável às tiranias políticas do Oriente. A idéia da reencarnação é o caldo de cultura do despotismo, pois as massas crentes se entregam a qualquer jugo.”
Muitos confundem a resignação espírita com o conformismo religioso. Mas, contraditoriamente, acusam o Espiritismo e não acusam as religiões. Por outro lado, tiram conclusões teóricas de fatos que podem ser observados na prática. A idéia da reencarnação não é nova, não nasceu com o Espiritismo, e não precisamos teorizar a respeito, pois temos toda a história da humanidade ante os olhos, para nos mostrar praticamente os seus efeitos.
Vamos, entretanto, por ordem. E tratemos, primeiro, da resignação e do conformismo. A resignação espírita decorre, não de uma sujeição místico-religiosa a forças incontroláveis, mas de uma compreensão do problema da vida. Quando o espírita se resigna, não está se submetendo pelo medo, mas apenas aceitando uma realidade à qual terá de sujeitar, exatamente para superá-la, para vencê-la. Não é, pois, o conformismo que se manifesta nessa resignação, mas a inteligente compreensão de que a vida é um processo em desenvolvimento, dentro do qual o homem tem de se equilibrar.
Acaso não é assim que fazemos todos, espíritas e não-espíritas, em nossa vida diária? O leitor inconformado não é também obrigado, diariamente, a aceitar uma porção de coisas a que gostaria de furtar-se? Mas a diferença entre resignação ou aceitação, de um lado, e conformismo, de outro, é que a primeira atitude é ativa e consciente, enquanto a segunda é passiva e inconsciente. O Espiritismo nos ensina a aceitar a realidade para vencê-la.
“Se a doença o acossa, – dizem – o espírita entende que está sendo vítima do fatalismo cármico, do destino irrevogável. Se a morte lhe rouba um ente querido, ele acha que não deve chorar, mas agradecer a Deus. Se o patrão o pune, ele se submete; se o amigo o trai, ele perdoa; se o inimigo lhe bate na face esquerda, ele lhe oferece a direita. O Espiritismo é a doutrina da despersonalização humana.”
Mas acontece que essa despersonalização não é ensinada pelo Espiritismo, e sim pelo Cristianismo. Quando o Espiritismo ensina a conformação diante da doença e da morte, o perdão das ofensas e das traições, nada mais está fazendo do que repetir as lições evangélicas. Ora, como o leitor acusa o Espiritismo em nome do Cristianismo, é evidente que está em contradição. Além disso, convém esclarecer que não se trata de despersonalização, mas de sublimação da personalidade. O que o Cristianismo e o Espiritismo querem é que o homem egoísta, brutal, carnal, agressivo, animalesco, seja substituído pelo homem espiritual. A “personalidade” animal deve dar lugar à verdadeira personalidade humana.
Quanto ao caso das doenças, seria oportuno lembrar ao leitor as curas espíritas. Não chega isso para mostrar que não há fatalismo cármico? O que há é a compreensão de que a doença tem o seu papel na vida humana. Mas cabe ao homem, nesse terreno, como em todos os demais, lutar para vencê-la. O Espiritismo, longe de ser uma doutrina conformista, é uma doutrina de luta. O espírita luta incessantemente, dia e noite, para superar o mundo e superar-se a si mesmo. Conhecendo, porém, o processo da vida e as suas exigências, não se atira cegamente à luta, mas procurando realizá-la com inteligência, num constante equilíbrio entre as suas forças e o poder dos obstáculos.
Fonte: (as crônicas do irmão Saulo)
Extraído de Espiritualidade e Sociedade
A verdade sobre o pseudônimo “Irmão Saulo”
A missão de Herculano Pires começava a exigir muito mais e o mestre passou a atender os pedidos de instituições sediadas fora de São Paulo para realizar palestras e cursos de Espiritismo. No mês de agosto de 1948 esteve em Matão. Hospedou-se na residência de seu amigo e médium Urbano de Assis Xavier e proferiu no Centro Espírita “Amantes da Pobreza”, fundado pelo notável apóstolo Cairbar Schutel, três conferências: “O Espiritismo e o Cristianismo”, “O Espiritismo e os Problemas Humanos” e “O Espiritismo em face da Educação da Mocidade”. A reportagem do tradicional jornal de Matão “A Comarca” esteve presente e em crônica na primeira página assim se referiu a Herculano Pires:
“Ouvimos as primeiras conferências do jovem espírita e brilhante jornalista, de quem podemos dizer que é um orador completo, pela maneira simples de explicar os assuntos de suas teses, pela simpatia com que se apresenta na tribuna e pela sinceridade que imprime às suas palavras.”
Um pormenor que não pode passar despercebido: Herculano Pires, para bem realizar sua missão espírita, se viu obrigado em 1948 a reduzir a atividade profissional. Deixou a “folha da Manhã” e o “Jornal de São Paulo”, ficando apenas nos “Diários Associados”, embora o salário fosse pequeno. É quando passou a fazer uso do pseudônimo “Irmão Saulo”, cuja história com lances dramáticos merece registro especial.
Em 1948 publicava o “Diário de São Paulo” uma coluna espírita diária sob a responsabilidade da Federação Espírita do Estado de São Paulo. O precioso espaço era mal aproveitado porque a FEESP divulgava apenas mensagens psicografadas já conhecidas do público e trechos da obra A Grande Síntese, de Pietro Ubaldi. Foi por essas razões que a coluna saiu das mãos do redator da FEESP para as de “Irmão Saulo”, que a tornou famosa. O fato serviu para que Adenolf Póvoas, que se dizia espírita, mas era autor de Lama no Espiritismo (tenebroso livro que caluniava companheiros nossos) acusasse “Irmão Saulo” de haver roubado da FEESP a coluna. Herculano Pires achou melhor calar-se, já que Adenolf era escritor desacreditado; mas a pulga ficara atrás da orelha de alguns confrades invejosos… O tempo, no entanto, tudo esclarece. Vamos, pois, agora narrar com detalhes a verdade.
Em seu diário íntimo, escreveu Herculano Pires estas palavras:
“Acusava-me de haver roubado a coluna Espírita, que durante vinte e tantos anos publiquei no “Diário de São Paulo”, das mãos dos dirigentes da Federação Espírita do Estado de São Paulo. E citava, como sua fonte de informações, Benedito Godoy Paiva, autor de Quando o Evangelho diz não. Nunca me interessei por apurar a verdade. Tratava-se de uma tolice. Passei a fazer a crônica quando Hermínio Sacchetta, assumindo a direção do “Diário”, considerou inútil a coluna que a Federação mantinha e resolveu suprimi-la.23 Chamou então Wandick de Freitas e eu, que éramos redatores, e propôs-nos que assumíssemos a seção e lhe déssemos um caráter jornalístico mais dinâmico e atualizado.”
E Herculano Pires prossegue:
“Eu e o Wandick nos prontificamos a atender, evitando a perda da coluna, e convidamos Odilon Negrão para nos ajudar. Foi então que inventei o pseudônimo coletivo de Irmão Saulo, em homenagem a Saulo de Tarso, o apóstolo espírita da 1ª Epístola aos Coríntios, onde expõe vários princípios espíritas e relata como se faziam sessões mediúnicas no seu tempo. Wandick e Odilon me deixaram só e o pseudônimo coletivo se tornou individual. Póvoas não sabia nada disso.”
Adenolf Póvoas padecia de forte obsessão espiritual. Desencarnou em São Paulo quando intervinha em um assalto a mão armada no armazém que ele frequentava. Recebeu três tiros no peito por haver aconselhado os delinquentes a desistirem do assalto. O infeliz Adenolf contava mais de setenta anos de idade.
A seção espírita do “Diário de São Paulo” tinha, aproximadamente, quinze centímetros de altura e era diária. Manteve-se assim por quinze anos, mas depois tornou-se dominical e em compensação passou a ocupar duas colunas de vinte centímetros de altura, ganhando destaque. Além de uma crônica ou artigo, divulgava nela Herculano Pires os principais acontecimentos, mas se necessário defenderia a integridade da Doutrina, mesmo se atacada dentro do movimento doutrinário, porque entendia o apóstolo que “aqueles que desejam oferecer ao público uma imagem artificial do movimento espírita enganam-se a si mesmos, antes de enganar os outros”. E mais: O Espiritismo, por oferecer a Verdade, “não pode conciliar-se com as simulações e fantasias das convenções humanas”.
A Coluna Espírita marcou época. Boa parte do público interessado nos problemas espirituais adquiria o jornal devido às crônicas. O pseudônimo tornara-se respeitado porque “Irmão Saulo” discutia os temas com profundidade jamais igualada, encantando os leitores; inclusive, porque era seu estilo literário incisivo e elegante, mas sóbrio, pleno de musicalidade e magia. Estilo olímpico. Redigidas com o bom senso kardeciano, ou seja, com muita sabedoria, mas sem paixão, as crônicas do apóstolo movimentavam a opinião pública. Uma delas, por exemplo, transcrita em setembro de 1960 pelo jornal “O Imparcial”, de Araraquara, e intitulada “Praticar a caridade é cumprir o mandamento do amor ao próximo”, repercutiu na Câmara Municipal daquela cidade. Os vereadores Célio Biller Teixeira e Flávio Thomaz de Aquino, fizeram constar em ata um voto de louvor a Irmão Saulo por haver “defendido de maneira impecável sua fé espírita com profundo respeito à opinião de outros religiosos”.
Herculano Pires, agradecendo o voto de louvor, declarou: “O gesto de Vossas Excelências é tanto mais significativo por ter partido de quem não segue os meus ideais religiosos. Essa compreensão humana, que supera os sectarismos exclusivistas do passado, é característica da civilização. Defendendo-a, defendemos o próprio homem, cuja essência e cujo destino devem estar sempre acima dos sistemas de ideias ou de crenças.”
O célebre médium Chico Xavier, em carta datada de 31 de outubro de 1971 endereçada a Herculano Pires, assim se referiu às crônicas:
“As suas crônicas aos domingos, no “Diário” estão admiráveis. A Doutrina Espírita sempre brilhando em seus conceitos e esclarecimentos com o equilíbrio, elegância, elevação e bom senso que lhe caracterizam os recursos de Missionário da Nova Revelação.”
É evidente que as crônicas do apóstolo de Kardec não poderiam permanecer soterradas no arquivo dos jornais. E, por sugestão de Jorge Rizzini, o editor Frederico Giannini lançou em 1962, com o selo da Editora Edicel, uma coletânea que recebeu de Herculano Pires o título Os Três Caminhos de Hécate. Vinte anos depois a Editora Correio Fraterno do ABC lançaria mais quatro coletâneas: O Homem Novo, O Infinito e o Finito, Visão Espírita da Bíblia e O Mistério do Bem e do Mal. É de esperar-se que outras surjam…
A extinção da coluna espírita no “Diário de São Paulo” foi um momento amargo na vida de Herculano Pires. Ele a redigiu por mais de vinte anos, ininterruptamente – e sem aceitar um centavo a mais do jornal.