Todo livro de autoajuda que se preze tem entre suas receitas de bem-estar o preceito de se usufruir da boa Música, pois esta não é uma criação humana, mas sim uma dádiva divina: a arte musical terrena é uma singela representação da música celeste, tal como o brilho lunar refletido numa lagoa não é a lua.
Harmonia é uma aptidão inerente ao Espírito — a todos os Espíritos — parelho ao instinto de progressão que nos instiga a evoluirmos sempre. Tal é o seu préstimo.
Toda a criação é uma sinfonia. A manutenção do Universo idem. O rugido do solo terreno, o chio da água, o estrondo retumbante do trovão, o gorjeio dos pássaros… Tudo isso é uma canção natural. Até o silêncio — que não deixa de ser um elemento musical — é peça sonora. Logo, Deus, o Grande Autor, é outrossim o Grande Compositor e Maestro da canção universal.
Antes que a raça humana desenvolvesse a escrita e a fala, a intuição materna já havia desenvolvido a canção de ninar, com modestos solfejos a embalar suas crias no colo, com a mais pura autenticidade. Observando a Natureza o homem aprendeu a cantar e a ritmar. No eco vindo das cavernas, encontrou os primeiros efeitos especiais, ainda no primitivismo. E por que queriam agradar aos seus deuses, nossos ancestrais elegeram a Música como o mais sublime tributo e meio de oblação, aquilo que melhor poderiam dar aos seres superiores. Assim nasceu o gênero sacro. A profanidade musical surgiu quando os reis da terra recobraram para si o status de divindade. A Música deu vida aos aedos e trovadores, e no curso de seu alargamento assumiu feições emotivas com o romantismo até se vulgarizar, para quebrar o atavismo da exclusividade do elitismo, achando-se atualmente numa miscelânea tal, que ora encanta, ora espanta.
Mas o que é a Música, afinal?
Nem mesmo os grandes mestres desta arte na Terra ousaram circunscrever o seu conceito: “Música não é para ser explicada, mas para ser sentida!” — concorda a maioria. Sendo de ordem metafísica, o homem não poderia, logicamente, explicá-la.
Certa vez, porém, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, sob a regência do egrégio Allan Kardec, ocupou-se desta temática, compreendendo que a Música, genuinamente de natureza espiritual, deva ter uma aplicação transcendental e não meramente para entretenimento terreno — embora seja legítimo este emprego. E para aqueles eminentes estudiosos fez-se presente, mediunicamente, o Espírito de Gioachino Antonio Rossini, que em vida foi renomado compositor de obras-primas (tais como “A Cinderela”, “O Barbeiro de Sevilha” e “Guilherme Tell”). Este se pôs a debruçar-se sobre a interpretação espírita à Harmonia, da qual ora colocou-se humildemente na condição de singelo aprendiz. (vide capítulos “Música Celeste” e “Música Espírita”, ambos em OBRAS PÓSTUMAS, Allan Kardec)
Não é que haja música na espiritualidade, mas que A Música é do mundo dos Espíritos — afirma Rossini — e esta é sem comparação — acrescenta. As entidades elevadas que dominam a técnica musical a produzem por ação direta com o fluido cósmico, cujas vibrações penetram no âmago dos seres e se confunde com a prece, glorificando a Deus e levando ao êxtase aqueles que são capazes de concebê-la. Tal configuração ressoa no éter de maneira que nenhum instrumento humano jamais será capaz de imitar ao menos aproximado.
Rossini continua sua interpretação comparando a Música a uma ponte: é uma espécie de médium que transmite a harmonia do compositor aos seus ouvintes. A essência, portanto, é a Harmonia, carregamento de sentimentos daquele que a compõe. A música é posta a serviço desse sentimento para tentar reproduzir as mesmas sensações do compositor àquele que ouve. Uma canção está sempre emoldurada de parte do conteúdo daquele que a produziu. O ouvinte, consciente ou não, absorve esse contento. A boa criação musical é uma carta de amor que encantará àquele que a ler. Em contrapartida, a composição vulgar esparge o perfume da malícia, do rancor, da desonra. Ela sobrecarrega seu receptor e infama o Pai Celeste. A música entoa aquilo que ao coração preenche.
Se em nosso orbe essa carga de sentimentos de que se compõe uma música pode ser falseada ou mal reproduzida, no mundo espiritual isso não é possível, pois a transmissão é de alma para alma, sem auxílio de instrumentos rudes e limitados. Os Espíritos musicam o composto exato daquilo que são.
Se de um lado da ponte está o artífice da obra harmônica, do outro está o ouvidor. Este se enleva com a qualidade da obra conforme seu estágio evolutivo. E escutar não constitui simplesmente um ato passivo, mas é, além disso, ressoar na mesma faixa de vibração — positiva ou negativa — tal qual uma câmara de eco. O gênero, por conseguinte, serve como um dos parâmetros para graduar os indivíduos, fazendo valer esta versão de um anexim: Diz-me que música tu ouves que te direi quem és.
Rossini atentam-nos para a importância da música espírita, como utensílio de elevação individual e coletiva. Seja de teor doutrinário ou de louvação, ela há de alavancar sentimentos mais nobres na humanidade. O Espírito de sutis percepções — dado seu atraso moral e intelectual — por vezes é tangido pela harmonia, levado ao cume de uma satisfação — ainda que não a compreenda completamente — e, de volta à realidade, sente em seu imo o almejo por subir novamente ao monte prazeroso. Este o efeito terapêutico de que a Música é capaz, e que nos reporta a um episódio bíblico, contado no primeiro livro de Samuel, em que Saul, o rei déspota do povo hebreu, atormentado por angústias oriundas de seus distúrbios morais, experimentou o efeito revigorador produzido pelos sons tocados em uma harpa pelo menino Davi, que mais tarde se tornaria o mais memorável dos reis de Israel e a quem se imputa o título de mediador do livro dos Salmos.
Eis o instinto natural ao progresso imprimido na alma de todo ser inteligente. Assim, a música espírita é uma mola propulsora para o melhoramento individual. Ela projeta o oásis prometido às almas e nos incita a caminhar nesse rumo.
A descrição acima veio de um indivíduo, Gioachino Rossini, mas foi corroborada pelos Espíritos Superiores que acercaram o altivo codificador espírita e o mencionado grupo de estudos, autenticando assim a tese em nome do Espiritismo.
Visto que a música é uma das incumbências dos Espíritos, cuidemos de nos qualificar nessa matéria, começando pela triagem do que ouvimos, caminhando para a mediunização musical (reprodução das composições) até topar a sublime aptidão para a composição.
Espíritas, patrocinem a música espírita, ouçam, componham, toquem e cantem músicas espíritas. Mas que ela seja ato de caridade da parte do músico espírita, tal como na mediunidade, sem benefícios financeiros ou privilégios individualistas.
Mães, embalem seus filhos no colo e cantem para eles!
Homens, enfileirem-se com a orquestra da Natureza.
Por Ery Lopes