Allan Kardec
(Extraído do site: www.bvespirita.com)
(Revue Spirite, maio de 1867, pp. 129-132.)
O Espiritismo nos ensina que os Espíritos constituem a população invisível do globo; que estão no espaço e entre nós, vendo-nos e acotovelando-nos incessantemente, de tal modo que, quando nos julgamos sós, temos constantemente testemunhas secretas de nossas ações e pensamentos. Isso pode, para certas pessoas, parecer constrangedor; mas, sendo um fato, não se pode impedir que o seja. Cabe a cada um proceder como o homem virtuoso que não temeria que sua casa fosse feita de vidro. A essa causa, sem dúvida, é que se deve atribuir a revelação de tantas torpezas e más ações que se acreditavam ocultas na sombra.
Sabemos, ademais, que numa reunião sempre há, além dos seres corporais, os assistentes invisíveis; que, sendo a permeabilidade uma das propriedades do organismo dos Espíritos, estes podem achar-se em número ilimitado, mesmo num espaço circunscrito. Disseram-nos muitas vezes que em certas sessões havia inumeráveis Espíritos. Na explicação dada ao Sr. Bertrand acerca das comunicações coletivas que obteve, afirma-se que o número de Espíritos presentes era tão grande que a atmosfera estava, por assim dizer, saturada de seus fluidos. Tal fato não é novo para os espíritas; todavia, talvez não se hajam deduzido dele todas as conseqüências.
Sabe-se que os fluidos que emanam dos Espíritos são mais ou menos salutares, conforme o seu grau de depuração. Conhece-se seu poder curativo, em certos casos, bem como seus efeitos mórbidos, de um indivíduo sobre outro. Ora, visto que o ar pode ser saturado desses fluidos, não é evidente que, conforme a natureza dos Espíritos que se reúnem em um determinado lugar, o ar ambiente esteja impregnado de elementos salutares ou malsãos, elementos esses que exercem influência tanto sobre a saúde física como moral dos que nele se encontrem? Quando se considera a energia da ação que um único Espírito pode exercer sobre um homem, será de surpreender a que resulte de uma aglomeração de centenas ou milhares de Espíritos? Tal ação será boa ou má, segundo seja benéfico ou maléfico o fluido que os Espíritos vertam num determinado ambiente, fluido que age de modo semelhante às emanações fortificantes ou aos miasmas deletérios que se disseminam no ar. Desse modo podem-se explicar certos efeitos coletivos que se produzem sobre as massas de pessoas; a sensação de bem-estar ou mal-estar que se experimenta em determinados meios, sem causa aparente conhecida; o arrastamento coletivo para o bem ou para o mal; os impulsos generosos, o entusiasmo ou o desencorajamento, a espécie de vertigem que por vezes se apodera de toda uma assembléia, de toda um cidade, ou mesmo de todo um povo. Cada indivíduo sofre, proporcionalmente ao seu grau de sensibilidade, a influência dessa atmosfera viciada ou vivificante. Nesse fato indubitável sobre as relações do mundo espiritual com o corporal, confirmado pela teoria e pela experiência, encontramos um novo princípio de higiene, que um dia a ciência fará seja reconhecido por todos.
Poderemos subtrair-nos a essas influências, que emanam de fonte inacessível aos meios materiais? Sem nenhuma dúvida! Pois do mesmo modo que saneamos os lugares insalubres, destruindo a fonte dos miasmas pestilentos, podemos sanear a atmosfera moral que nos envolve, subtraindo-nos às influências perniciosas dos fluidos espirituais malsãos; e de forma mais fácil do que escapamos às exalações pantanosas, já que isso depende unicamente de nossa vontade. Esse não será um dos menores benefícios do Espiritismo, quando for compreendido, e sobretudo praticado, universalmente.
Um princípio perfeitamente comprovado para todo espírita é que as qualidades do fluido espiritual estão na razão direta das qualidades do Espírito encarnado ou desencarnado. Quanto mais elevados e desprendidos das influências da matéria forem seus sentimentos, mais depurado será seu fluido. De acordo com os pensamentos dominantes que tenha, um encarnado irradia fluidos impregnados desses pensamentos, que os viciam ou saneiam; fluidos realmente materiais, embora impalpáveis, invisíveis para os olhos do corpo, perceptíveis porém aos sentidos perispirituais e visíveis aos olhos da alma, dado que impressionam fisicamente e assumem aparências muito diversas, para aqueles que são dotados da vista espiritual.
A mera presença de encarnados numa assembléia determina, pois, que os fluidos ambientes sejam salubres ou insalubres, segundo sejam bons ou maus os pensamentos aí dominantes. Quem quer que alimente pensamentos de ódio, inveja, ciúme, orgulho, egoísmo, animosidade, cupidez, falsidade, hipocrisia, maledicência, malevolência – em uma palavra, pensamentos provenientes da fonte das paixões más – espalha ao seu redor eflúvios fluídicos malsãos, que reagem sobre os que estejam à sua volta. Numa assembléia em que, ao contrário, cada um traga apenas sentimentos de bondade, de caridade, de humildade, de devotamento desinteressado, de benevolência e amor ao próximo, o ar estará impregnado de emanações salutares, em meio às quais sentimos bem-estar.
Se considerarmos, agora, que os pensamentos atraem pensamentos de mesma natureza, e que os fluidos atraem fluidos similares, compreenderemos que cada indivíduo traz consigo um cortejo de Espíritos que lhe são simpáticos, bons ou maus, e que, assim, o ar será saturado de fluidos correspondentes aos pensamentos predominantes. Se os maus pensamentos estão em minoria, não impedem que as boas influências se façam presentes, mas estas ficam paralisadas. Se eles dominam, enfraquecem a irradiação fluídica dos Espíritos bons, ou mesmo, por vezes, impedem que os fluidos bons penetrem no ambiente, do mesmo modo que a névoa enfraquece ou barra os raios do Sol.
Qual, portanto, o meio de nos subtrairmos à influência dos maus fluidos? Ele ressalta do estudo da própria causa que produz o mal. Que fazemos quando reconhecemos que um alimento é prejudicial à saúde? Rejeitamo-lo, substituindo-o por um mais saudável. Ora, visto que são os maus pensamentos que engendram os maus fluidos e os atraem, é preciso que nos esforcemos para ter somente bons pensamentos, repelindo tudo o que for ruim, da mesma forma que repelimos um alimento que pode nos tornar doentes – em uma palavra, é preciso trabalhar por nossa melhoria moral. Servindo-nos de uma comparação evangélica, devemos “não apenas limpar o vaso por fora, mas limpá-lo sobretudo por dentro”.
Melhorando-se, a Humanidade verá depurar-se a atmosfera fluídica em meio à qual vive, porque não lhe derramará senão bons fluidos, sendo que estes oporão barreira à invasão dos maus. Se um dia a Terra vier a ser ocupada apenas por homens que pratiquem entre si as leis divinas do amor e da caridade, não há dúvida de que então eles se encontrarão em condições de higiene física e moral muito diferentes das que existem hoje.
Esse tempo está certamente distante, mas, enquanto não chega, tais condições melhores podem existir parcialmente, cabendo às assembléias espíritas justamente fornecer o exemplo. Os que conhecem a luz serão tanto mais repreensíveis quanto houverem possuído entre as mãos os meios de se iluminar; serão responsabilizados pelos atrasos que seu mau exemplo e sua má-vontade acarretarem para o processo de melhoria geral.
Trata-se de uma utopia, de uma declamação vã? Não; é uma dedução lógica dos próprios fatos que o Espiritismo a cada dia nos revela. Efetivamente, o Espiritismo nos prova que o elemento espiritual, que até hoje se considerou como a antítese do elemento material, guarda com ele uma conexão íntima, de onde resulta uma multidão de fenômenos ainda não observados ou compreendidos.
Quando a ciência houver assimilado os elementos fornecidos pelo Espiritismo, daí tirará novos e importantes recursos para a própria melhoria material da Humanidade. Vemos, assim, ampliar-se diariamente o círculo das aplicações da doutrina, que está longe de restringir-se ao fenômeno pueril das mesas girantes, como alguns ainda pensam. O Espiritismo não tomou verdadeiramente impulso senão quando entrou pela via filosófica. Ficou então menos divertido para certas pessoas, que nele buscavam apenas uma distração; mas por outro lado passou a ser apreciado por pessoas sérias, e o será cada vez mais, à medida que for melhor compreendido em suas conseqüências.
O Livro dos Espíritos
Introdução
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA DOUTRINA ESPÍRITA I ESPIRITISMO E ESPIRITUALISMO
Para as coisas novas necessitamos de palavras novas, pois assim o exige a clareza de linguagem, para evitarmos a confusão inerente aos múltiplos sentidos dos próprios vocábulos. As palavras espiritual, espiritualista, espiritualismo têm uma significação bem definida; dar-lhes outra, para aplicá-las à Doutrina dos Espíritos, seria multiplicar as causas já tão numerosas de anfibologia. Com efeito, o espiritualismo é o oposto do materialismo; quem quer que acredite haver em si mesmo alguma coisa além da matéria é espiritualista; mas não se segue daí que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível.
Em lugar das palavras espiritual e espiritualismo empregaremos, para designar esta última crença, as palavras espírita e espiritismo, nas quais a forma lembra a origem e o sentido radical e que por isso mesmo têm a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando para espiritualismo a sua significação própria. Diremos, portanto, que a Doutrina Espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível.
Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se o quiserem, os espiritistas.
Como especialidade o Livro dos Espíritos contém a Doutrina Espírita; como generalidade liga-se ao Espiritualismo, do qual representa uma das fases. Essa a razão porque traz sobre o título as palavras: Filosofia Espiritualista.
II – ALMA, PRINCÍPIO VITAL E FLUIDO VITAL
Há outra palavra sobre a qual igualmente devemos entender-nos porque é uma das chaves de toda doutrina moral e tem suscitado numerosas controvérsias por falta de uma acepção bem determinada: é a palavra alma. A divergência de opiniões sobre a natureza da alma provém da aplicação particular que cada qual faz desse vocábulo. Uma língua perfeita, em que cada idéia tivesse a sua representação por um termo próprio, evitaria muitas discussões; com uma palavra para cada coisa todos se entenderiam.
Segundo uns, a alma é o princípio da vida orgânica material; não tem existência própria e se extingue com a vida: é o puro materialismo. Neste sentido e por comparação dizem de um instrumento quebrado, que não produz mais som, que ele não tem alma. De acordo com esta opinião a alma seria um efeito e não uma causa.
Outros pensam que a alma é o princípio da inteligência, agente universal de que cada ser absorve uma porção. Segundo estes, não haveria em todo o Universo senão uma única alma, distribuindo fagulhas para os diversos seres inteligentes durante a vida; após a morte cada fagulha volta à fonte comum, confundindo-se no todo, como os córregos e os rios retornam ao mar de onde saíram. Esta opinião difere da precedente em que, segundo esta hipótese, existe em nós algo mais do que a matéria, restando qualquer coisa após a morte; mas é quase como se nada restasse, pois não subsistindo a individualidade não teríamos mais consciência de nós mesmos. De acordo com esta opinião, a alma universal seria Deus e cada ser uma porção da Divindade; é esta uma variedade do Panteísmo.
Segundo outros, enfim, a alma é um ser moral, distinto, independente da matéria e que conserva a sua individualidade após a morte. Esta concepção é incontestavelmente a mais comum, porque sob um nome ou outro a idéia desse ser que sobrevive ao corpo se encontra em estado de crença instintiva, e independente de qualquer ensinança, entre todos os povos, qualquer que seja o seu grau de civilização. Essa doutrina, para a qual a alma é causa e não efeito, é a dos espiritualistas.
Sem discutir o mérito dessas opiniões, e não considerando senão o lado lingüístico da questão, diremos que essas três aplicações da palavra alma constituem três idéias distintas, que reclamariam, cada uma, um termo diferente. Essa palavra tem, portanto, significação tríplice, e cada qual está com a razão, segundo o seu ponto de vista, ao lhe dar uma definição; a falha se encontra na língua, que não dispõe de mais de uma palavra para três idéias. Para evitar confusões, seria necessário restringir a acepção da palavra alma a uma de suas idéias. Escolher esta ou aquela é indiferente, simples questão de convenção, e o que importa é esclarecer. Pensamos que o mais lógico é tomá-la na sua significação mais vulgar, e por isso chamamos alma ao ser imaterial e individual que existe em nós e sobrevive ao corpo.
Ainda que este ser não existisse e não fosse mais que um produto da imaginação, seria necessário um termo para designá-lo.
Na falta de uma palavra especial para cada uma das duas outras idéias, chamaremos:
Princípio vital, o princípio da vida material e orgânica, seja qual for a sua fonte, que é comum a todos os seres vivos, desde as plantas ao homem. A vida podendo existir sem a faculdade de pensar, o princípio vital é coisa distinta e independente. A palavra vitalidade não daria a mesma idéia. Para uns, o princípio vital é uma propriedade da matéria, um efeito que se produz quando a matéria se encontra em dadas circunstâncias; segundo outros, e essa idéia é mais comum, ele se encontra num fluido especial, universalmente espalhado, do qual cada ser absorve e assimila uma parte durante a vida, como vemos os corpos inertes absorverem a luz. Este seria então o fluido vital, que segundo certas opiniões, não seria outra coisa senão o fluido elétrico animalizado, também designado por fluido magnético, fluido nervoso, etc.
Seja como for, há um fato incontestável, pois resulta da observação, e é que os seres orgânicos possuem uma força íntima que produz o fenômeno da vida, enquanto essa força existe; que a vida material é comum a todos os seres orgânicos, e que ela independe da inteligência e do pensamento; que a inteligência e o pensamento são faculdades próprias de certas espécies orgânicas; enfim, que entre as espécies orgânicas dotadas de inteligência e pensamento, há uma, dotada de um senso moral especial, que lhe dá incontestável superioridade perante as outras, e que é a espécie humana.
Compreende-se que, com uma significação múltipla, a alma não exclui o materialismo, nem o panteísmo. Mesmo o espiritualista pode muito bem entender a alma segundo uma ou outra das duas primeiras definições, sem prejuízo do ser imaterial distinto, ao qual dará qualquer outro nome. Assim, essa palavra não representa uma opinião: é um Proteu, que cada qual ajeita a seu modo, o que dá origem a tantas disputas intermináveis.
Evitaríamos igualmente a confusão, mesmo empregando a palavra alma nos três casos, desde que lhe ajuntássemos um qualificativo para especificar a maneira pela qual a encaramos, ou a aplicação que lhe damos. Ela seria então um termo genérico, representando ao mesmo tempo o princípio da vida material, da inteligência e do senso moral, que se distinguiriam pelo atributo, como o gás, por exemplo, que se distingue ajuntando-se-lhe as palavras hidrogênio, oxigênio e azoto.
Poderíamos dizer, e talvez fosse o melhor, a alma vital, para designar o princípio da vida material, a alma intelectual, para o princípio da inteligência, e a alma espírita, para o princípio da nossa individualidade após a morte. Como se vê, tudo isto é questão de palavras, mas questão muito importante para nos entendermos. Dessa maneira, a alma vital seria comum a todos os seres orgânicos: plantas, animais e homens; a alma intelectual seria própria dos animais e dos homens, e a alma espírita pertenceria somente ao homem.
Acreditamos dever insistir tanto mais nestas explicações, quanto a Doutrina Espírita repousa naturalmente sobre a existência em nós, de um ser independente da matéria e que sobrevive ao corpo. Devendo repetir freqüentemente a palavra alma no curso desta obra tínhamos de fixar o sentido em que a tomamos, a fim de evitar qualquer engano.
Vamos, agora, ao principal objetivo desta instrução preliminar.
III – A DOUTRINA E SEUS CONTRADITORES
A Doutrina Espírita, como toda novidade, tem seus adeptos e seus contraditores. Tentaremos responder a algumas das objeções destes últimos, examinando o valor das razões em que se apoiam, sem termos entretanto a pretensão de convencer a todos; pois há pessoas que acreditam que a luz foi feita somente para eles. Dirigimo-nos às pessoas de boa-fé, sem idéias preconcebidas ou posições firmadas mas sinceramente desejosas de se instruírem, e lhes demonstraremos que a maior parte das objeções que fazem à doutrina provêm de uma observação incompleta dos fatos e de um julgamento formado com muita ligeireza e precipitação.
Recordemos inicialmente, em breves palavras, a série progressiva de fenômenos que deram origem a esta doutrina.
O primeiro fato observado foi o movimento de objetos; designaram-no vulgarmente com os nomes de mesas girantes ou dança das mesas. Esse fenômeno, que parece ter sido observado primeiramente na América, ou melhor, que se teria repetido nesse país, porque a História prova que ele remonta à mais alta Antigüidade, produziu-se acompanhado de circunstâncias estranhas, como ruídos insólitos e golpes desferidos sem uma causa ostensiva, conhecida. Dali, propagou-se rapidamente pela Europa e por outras partes do mundo; a princípio provocou muita incredulidade, mas a multiplicidade das experiências em breve não mais permitiu que se duvidasse da sua realidade.
Se esse fenômeno se tivesse restringido ao movimento de objetos materiais poderia ser explicado por uma causa puramente física.
Estamos longe de conhecer todos os agentes ocultos da Natureza e mesmo todas as propriedades dos que já conhecemos; a eletricidade, aliás, multiplica diariamente ao infinito os recursos que oferece ao homem e parece dever iluminar a Ciência com uma nova luz. Não haveria, portanto, nada de impossível em que a eletricidade, modificada por certas circunstâncias, ou qualquer outro agente desconhecido, fosse a causa desse movimento. A reunião de muitas pessoas, aumentando o poder da ação, parecia dar apoio a essa teoria porque se poderia considerar essa reunião como uma pilha múltipla, em que a potência corresponde ao número de elementos.
O movimento circular nada tinha de extraordinário: pertence à Natureza. Todos os astros se movem circularmente; poderíamos, pois, estar em face de um pequeno reflexo do movimento geral do Universo; ou, melhor dito, uma causa até então desconhecida poderia produzir acidentalmente, nos pequenos objetos e em dadas circunstâncias, uma corrente mais análoga à que impulsiona os mundos.
Mas o movimento não era sempre circular. Freqüentemente era brusco, desordenado, o objeto violentamente sacudido, derrubado, conduzido numa direção qualquer e contrariamente a todas as leis da Estática, suspenso e mantido no espaço. Não obstante, nada havia ainda nesses fatos que não pudesse ser explicado pelo poder de um agente físico invisível. Não vemos a eletricidade derrubar edifícios, arrancar árvores, lançar à distância os corpos mais pesados, atraí-los ou repeli-los?
Supondo-se que os ruídos insólitos e os golpes não fossem efeitos comuns da dilatação da madeira ou de qualquer outra causa acidental, poderiam ainda muito bem ser produzidos por acumulação do fluido oculto. A eletricidade não produz os ruídos mais violentos?
Até esse momento, como se vê, tudo pode ser considerado no domínio dos fatos puramente físicos e fisiológicos. E sem sair dessa ordem de idéias, ainda haveria matéria para estudos sérios, digna de prender a atenção dos sábios. Por que não aconteceu assim? É penoso dizer, mas o fato se liga a causas que provam, entre mil outras semelhantes, a leviandade do espírito humano.
De início, a vulgaridade do objeto principal que serviu de base às primeiras experiências talvez não lhe seja estranha. Que influência não teve uma simples palavra, muitas vezes, sobre as coisas mais graves! Sem considerar que o movimento poderia ser transmitido a um objeto qualquer, prevaleceu a idéia da mesa, sem dúvida por ser o objeto mais cômodo e porque todos se sentam mais naturalmente em torno de uma mesa que de qualquer outro móvel. Ora, os homens superiores são às vezes tão pueris, que não seria impossível certos espíritos de elite se julgarem diminuídos se tivessem de ocupar-se daquilo que se convencionara chamar a dança das mesas. É mesmo provável que, se o fenômeno observado por Galvani o tivesse sido por homens vulgares e caracterizado por um nome burlesco, estivesse ainda relegado ao lado da varinha mágica. Qual o sábio que não se teria julgado diminuído ao ocupar-se da dança das rãs?
Alguns, entretanto, bastante modestos para aceitarem que a Natureza poderia não lhes ter dito a última palavra, quiseram ver, para tranqüilidade de consciência. Mas aconteceu que o fenômeno nem sempre correspondeu à sua expectativa, e por não se ter produzido constantemente, à sua vontade e segundo a sua maneira de experimentação, concluíram eles pela negativa.
Malgrado, porém, a sua sentença, as mesas, pois que há mesas, continuam a girar, e podemos dizer com Galileu: “Contudo, elas se movem”. Diremos ainda que os fatos se multiplicaram de tal modo que têm hoje direito de cidadania e que se trata apenas de encontrar para eles uma explicação racional.
Pode-se induzir qualquer coisa contra a realidade do fenômeno, pelo fato de ele não se produzir sempre de maneira idêntica, segundo a vontade e as exigências do observador? Os fenômenos de eletricidade e de química não estão subordinados a determinadas condições, e devemos negá-los porque não se produzem fora delas? Devemos estranhar que o fenômeno do movimento de objetos pelo fluido humano tenha também as suas condições e deixe de se produzir quando o observador, firmado no seu ponto de vista, pretende fazê-lo seguir ao seu capricho ou sujeitá-lo às leis dos fenômenos comuns, sem considerar que para fatos novos pode e deve haver novas leis? Ora, para conhecer essas leis é necessário estudar as circunstâncias em que os fatos se produzem e esse estudo não pode ser feito sem uma observação perseverante, atenta, e por vezes bastante prolongada.
Mas, objetam algumas pessoas, há freqüentemente fraudes visíveis. Perguntaremos inicialmente se estão bem certas de que há fraudes e se não tomaram por fraudes efeitos que não conseguiram apreender, mais ou menos como o camponês que tomava um sábio professor de Física, fazendo experiências, por um destro escamoteador. E mesmo supondo-se que as fraudes tenham ocorrido algumas vezes, seria isso razão para se negar o fato? Deve-se negar a Física, porque há prestidigitadores que se enfeitam com o título de físicos? É necessário aos demais considerar o caráter das pessoas e o interesse que elas poderiam ter em enganar. Seria tudo, então, simples brincadeira? Pode-se muito bem brincar um instante, mas uma brincadeira indefinidamente prolongada seria tão fastidiosa para o mistificador como para o mistificado. Haveria, além disso, numa mistificação que se propaga de um extremo a outro do mundo e entre as pessoas mais graves, mais veneráveis e esclarecidas, alguma coisa pelo menos tão extraordinária quanto o próprio fenômeno.
IV – MANIFESTAÇÕES INTELIGENTES
Se os fenômenos de que nos ocupamos se restringissem ao movimento de objetos, teriam permanecido no domínio das Ciências Físicas; mas não aconteceu assim: estavam destinados a nos colocar na pista dos fatos de uma ordem estranha. Acreditou-se haver descoberto, não sabemos por iniciativa de quem, que o impulso dado aos objetos não era somente o produto de uma força mecânica cega, mas que havia nesse movimento a intervenção de uma causa inteligente. Esta via, uma vez aberta, oferecia um campo inteiramente novo de observações; era o véu que se levantava sobre muitos mistérios. Mas haverá realmente neste caso uma potência inteligente? Essa é a questão. Se essa potência existe, o que é ela, qual a sua natureza, a sua origem? É ela superior à Humanidade? Tais são as outras questões que decorrem da primeira.
As primeiras manifestações inteligentes verificaram-se por meio de mesas que se moviam e davam determinados golpes, batendo um pé, e assim respondiam, segundo o que se havia convencionado, por “sim” ou por “não” à questão proposta. Até aqui, nada há de bastante convincente para os céticos, porque se poderia crer num efeito do acaso. Em seguida, obtiveram-se respostas mais desenvolvidas por meio das letras do alfabeto: dando o móvel um número de ordem de cada letra, chegava-se a formar palavras e frases que respondiam as questões propostas.
A justeza das respostas e sua correspondência com a pergunta provocaram a admiração. O ser misterioso que assim respondia, interpelado sobre a sua natureza, declarou que era um Espírito ou Gênio, deu o seu nome e forneceu diversas informações a seu respeito. Esta é uma circunstância muito importante a notar.
Ninguém havia então pensado nos Espíritos como um meio de explicar o fenômeno; foi o próprio fenômeno que revelou a palavra. Fazem-se hipóteses freqüentemente nas Ciências exatas para se conseguir uma base ao raciocínio; mas neste caso não foi o que se deu.
Esse meio de correspondência era demorado e incômodo. O Espírito, e esta é também uma circunstância digna de nota, indicou outro. Foi um desses seres invisíveis quem aconselhou a adaptar-se um lápis a uma cesta ou a outro objeto. A cesta, posta sobre uma folha de papel, é movimentada pela mesma potência oculta que faz girar as mesas; mas em lugar de um simples movimento regular, o lápis escreve por si mesmo, formando palavras, frases, discursos inteiros de muitas páginas, tratando das mais altas questões de Filosofia, de Moral, de Metafísica, de Psicologia, etc., e isso com tanta rapidez como se escrevesse à mão.
Esse conselho foi dado simultaneamente na América, na França e em diversos países. Eis os termos em que foi dado em Paris, a 10 de julho de 1853, a um dos mais fervorosos adeptos da doutrina, que há muitos anos, desde 1849, se ocupava com a evocação dos Espíritos: “Vá buscar no quarto ao lado a cestinha; prenda nela um lápis, coloque-a sobre o papel e ponha-lhe os dedos na borda”. Feito isso, depois de alguns instantes a cesta se pôs em movimento e o lápis escreveu legivelmente esta frase: “Isto que eu vos disse, proíbo-vos expressamente de o dizer a alguém; da primeira vez que escrever, escreverei melhor”.
O objeto a que se adapta o lápis, não sendo mais que simples instrumento, sua natureza e sua forma não importam; procurou-se a disposição mais cômoda e foi assim que muitas pessoas passaram a usar uma prancheta.
A cesta ou a prancheta não podem ser postas em movimento senão sob a influência de certas pessoas, dotadas para isso de um poder especial e que se designam pelo nome de médiuns, ou seja, intermediários entre os Espíritos e os homens. As condições que produzem este poder estão ligadas a causas ao mesmo tempo físicas e morais ainda imperfeitamente conhecidas, porquanto se encontram médiuns de todas as idades, de ambos os sexos e em todos os graus de desenvolvimento intelectual. Essa faculdade, entretanto, se desenvolve pelo exercício.
V – DESENVOLVIMENTO DA PSICOGRAFIA
Mais tarde reconheceu-se que a cesta e a prancheta nada mais eram do que apêndices da mão, e o médium, tomando diretamente o lápis, pôs-se a escrever por um impulso involuntário e quase febril. Por esse meio as comunicações se tornaram mais rápidas, mais fáceis e mais completas: é esse, hoje, o meio mais comum, tanto que o número de pessoas dotadas dessa aptidão é bastante considerável e se multiplica dia a dia. A experiência, por fim, tornou conhecidas muitas outras variedades da faculdade mediúnica, descobrindo-se que as comunicações podiam igualmente verificar-se através da escrita direta dos Espíritos, ou seja, sem o concurso da mão do médium nem do lápis.
Verificado o fato, um ponto essencial restava a considerar: o papel do médium nas respostas e a parte que nelas tomava, mecânica e moralmente. Duas circunstâncias capitais, que não escapariam a um observador atento, podem resolver a questão. A primeira é a maneira pela qual a cesta se move sob a sua influência, pela simples imposição dos dedos na borda; o exame demonstra a impossibilidade de o médium imprimir uma direção à cesta. Essa impossibilidade se torna sobretudo evidente quando duas ou três pessoas tocam ao mesmo tempo na mesma cesta; seria necessário entre elas uma concordância de movimentos realmente fenomenal; seria ainda necessária a concordância de pensamentos para que pudessem entender-se sobre a resposta a dar. Outro fato, não menos original, vem ainda aumentar a dificuldade. É a mudança radical da letra, segundo o Espírito que se manifesta e a cada vez que o mesmo Espírito volta, repetindo-a.
Seria pois necessário que o médium se tivesse exercitado em modificar a própria letra de vinte maneiras diferentes e, sobretudo, que ele pudesse lembrar-se da caligrafia deste ou daquele Espírito.
A segunda circunstância resulta da própria natureza das respostas, que são, na maioria dos casos, mormente quando se trata de questões abstratas ou científicas, notoriamente fora dos conhecimentos e às vezes do alcance intelectual do médium.
Este, de resto, em geral não tem consciência do que escreve e por outro lado nem mesmo entende a questão proposta, que pode ser feita numa língua estranha ou mentalmente, sendo a resposta dada nessa língua. Acontece, por fim, que a cesta escreve de maneira espontânea, sem nenhuma questão proposta, sobre um assunto absolutamente inesperado.
As respostas, em certos casos, revelam um teor de sabedoria, de profundeza e de oportunidade; pensamentos tão elevados e tão sublimes, que não podem vir senão de uma inteligência superior, impregnada da mais pura moralidade. De outras vezes são tão levianas, tão frívolas, e mesmo tão banais que a razão se recusa a admitir que possam vir da mesma fonte. Essa diversidade de linguagem não se pode explicar senão pela diversidade de inteligências que se manifestam. Essas inteligências são humanas ou não? Este é o ponto a esclarecer e sobre o qual se encontrará nesta obra a explicação completa, tal como foi dada pelos próprios Espíritos.
Eis, portanto, os efeitos evidentes que se produzem fora do círculo habitual de nossas observações; que não se passam de maneira misteriosa mas à luz do dia; que todos podem ver e constatar; que não são privilégios de nenhum indivíduo e que milhares de pessoas repetem à vontade todos os dias. Esses efeitos têm necessariamente uma causa e desde que revelam a ação de uma inteligência e de uma vontade, saem fora do domínio puramente físico.
Muitas teorias foram formuladas a respeito. Passaremos a examiná-las dentro em pouco e veremos se podem tornar compreensíveis todos os fatos produzidos. Admitamos por enquanto a existência de seres distintos da humanidade, pois é essa a explicação dada pelas inteligências que se manifestam, e vejamos o que eles nos dizem.
VI – RESUMO DA DOUTRINA DOS ESPÍRITOS
Os seres que se manifestam designam-se a si mesmos, como dissemos, pelo nome de Espíritos ou Gênios, e dizem, alguns pelo menos, que viveram como homens na Terra. Constituem o mundo espiritual, como nós constituímos, durante a nossa vida, o mundo corporal.
Resumimos em poucas palavras os pontos principais da doutrina que nos transmitiram, a fim de mais facilmente responder a certas objeções: “Deus é eterno, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom.
Criou o Universo, que compreende todos os seres animados e inanimados, materiais e imateriais.