“Ninguém nunca viu a Deus”
Para a mística a verdade é sempre interior.
Márcia Junges e Ricardo Machado
O italiano Marco Vannini discute a mística, trazendo a experiência do nada e do mistério como elementos importantes para pensar a problemática
Marco Vannini, um dos principais nomes sobre o tema no mundo, não considera que a mística seja uma experiência do mistério. “O assim chamado mistério é colocado por nós, e a nós são dadas as respostas. Certamente, há coisas que ignoramos, e a realidade de Deus é uma delas, pelo que podemos falar sempre e em qualquer caso somente da nossa experiência, evitando como a peste a tentação de dizer que ela é a ‘experiência de Deus’”, sustenta Vannini em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “A experiência do espírito é o conhecimento da nossa mais real essência, que é a essência humana, além de cada distinção acidental de cultura, religiões, modos de vida, todos relacionados com a contingência espaço-temporal, e também além da diferença de gênero, que subsiste em nível corpóreo e, em certa medida, também em nível psíquico, mas é inexistente no nível espiritual”, complementa.
Na avaliação de Marco Vannini, a experiência da ausência é, na realidade, a mesma do “nada”. “A experiência do nada não é somente negativa, trágica, mas pode ser sim extremamente frutífera, como purificadora de todos os ídolos, de toda a pretensa certeza”, considera. Para o pensador, vivemos em momento histórico em que a história e a ciência erodiram a crença que a fé proporcionava. “‘O deserto cresce’, Nietzsche já advertia há um século e meio que cada parte é responsável pela a ausência de propósito, o nada no seu sentido mais trágico”, sustenta. “Quando várias correntes místicas compreendem cada uma o específico da outra, entendem que são gotas do mesmo mar”, avalia o entrevistado.
Marco Vannini é um dos maiores estudiosos italianos da mística especulativa. Além de ter editado Mestre Eckhart e muitos outros místicos, ele é autor de La morte dell’anima. Dalla mistica alla psicologia (Ed. Le Lettere, 2004); Storia della mistica occidentale (Ed. Mondadori, 2005); Mistica e filosofia (Ed. Le Lettere, 2007); La mistica delle grande religioni (Ed. Le Lettere, 2010); Prego Dio che mi liberi da Dio (Ed. Bompiani, 2010), dentre outros. Em português, foi traduzida a sua Introdução à mística (Edições Loyola, 2005).
Neste ano Marco Vannini publicou os seguintes livros: Lessico Místico. Le parole della saggezza (Le Lettere: Firenze, 2013), Oltre il Cristianesimo. Da Eckhart a Le Saux (Bompiani: Milão, 2013) e, juntamente com Corrado Augias, Inchiesta su Maria. La storia vera della fanciulla che divenne mito (Rizzoli: Milão, 2013).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que sentido a mística é uma experiência do Mistério? Como a modernidade compreende essa vivência?
Marco Vannini – Não direi absolutamente que a mística seja a experiência do mistério. O assim chamado mistério é colocado por nós, e a nós são dadas as respostas. Certamente, há coisas que ignoramos, e a realidade de Deus é uma delas (Deum nemo vidit unquam, diz São João) , pelo que podemos falar sempre e em qualquer caso somente da nossa experiência, evitando como a peste a tentação de dizer que ela é a “experiência de Deus”. Podemos, todavia, dizer que é experiência de uma profundidade — ou de uma altura — vertiginosa que vivemos como experiência da realidade mais essencial de nós mesmos, e, juntamente, como experiência de uma bem-aventurança de outra maneira absolutamente desconhecida. Por certo, ela se refere implicitamente à luz eterna, ao Bem, ou seja, ao que chamamos comumente Deus, mas não podemos, a rigor, deduzir nenhuma teologia e, nesse sentido, o mistério permanece um mistério.
Acredito que a modernidade não aceita — e com razão — as afirmações dos teólogos, ou dos que se dizem místicos, de apresentar sua própria vivência como experiência de conhecimento de Deus, experiência de Deus, mas, em vez disso, compreende perfeitamente, e até aceita de bom grado, por seu caráter de verdadeiro conhecimento mil vezes superior ao das psicologias superficiais, a experiência mística como experiência de nós mesmos, no sentido recém-indicado.
IHU On-Line – Quais são as palavras fundamentais, o léxico que pode descrever a mística?
Marco Vannini – No meu Léxico Místico, publicado este ano, descrevi umas sessenta palavras importantes para a mística, mas também poderíamos acrescentar outras. Elas são todas importantes, pelo menos no sentido de que a realidade é uma só, pelo que todas as palavras e os conceitos estão indissoluvelmente ligados uns aos outros, e não é possível isolá-los, por assim dizer, e descrevê-los isoladamente, sem, em conjunto, referirem-se também às outras. Se eu devo fazer uma hierarquia, direi que algumas das principais palavras-chave são: amor, desapego, humildade, Uno, vazio.
IHU On-Line – Em outra entrevista à nossa publicação , o senhor afirmou que a experiência do espírito vai muito além das distinções espaço-temporais e de gênero. Qual é a importância de se pensar uma mística para além dessas categorias?
Marco Vannini – Como dizia acima, a experiência do espírito é o conhecimento da nossa mais real essência, que é a essência humana, além de cada distinção acidental de cultura, religiões, modos de vida, todos relacionados com a contingência espaço-temporal, e também além da diferença de gênero, que subsiste em nível corpóreo e, em certa medida, também em nível psíquico, mas é inexistente no nível espiritual. É evidente que esse conhecimento estabelece uma comunhão entre todos os seres humanos, em todos os lugares (e em todos os tempos), infinitamente superior àquela que se desejaria fundar sobre categorias de caráter político-social (por exemplo, a do direito) ou moral-religioso (por exemplo, o assim chamado ecumenismo), pois estão elas mesmas sujeitas ao condicionamento espaço-temporal.
IHU On-Line – Por que é preciso partir da antropologia clássica para compreender a mística?
Marco Vannini – Porque a antropologia clássica — bem como a cristã que dela se deriva — tem a experiência do ser humano como corpo, alma, espírito, enquanto aquela que prevalece em nossos tempos ignora simplesmente a realidade espiritual, e permanece no dualismo corpo-alma, de fato, corpo-psique. Assim o espírito, em vez de ser o que é, ou seja, o constituinte essencial do homem, desaparece em meio à névoa da indeterminação — também em nível teológico (o Espírito Santo). É necessário, portanto, primeiro ter uma experiência do espírito, e isso somente é possível ao se recuperar a conexão entre filosofia e misticismo, sem o que essa se perde no sentimentalismo.
IHU On-Line – Por que a instituição eclesiástica sempre suspeitou da mística enquanto tal?
Marco Vannini – Em primeiro lugar, porque a mística é como a filosofia — na verdade, a mística é filosofia, como acertadamente revela Pierre Hadot — e, como tal, não reconhece nenhuma autoridade acima da correta razão. Em segundo lugar, porque para a mística a verdade é sempre interior, e o próprio Deus interior intimo meo, como disse Agostinho , para o qual a relação com Deus existe somente na interioridade, sem mediação alguma, e isso, obviamente, tira não só o peso da Igreja, como também da Escritura. Em terceiro lugar, enfim, para a mística, a experiência paulina da unidade e da liberdade do espírito é intrínseca: quid adhaeret domino, unus spiritus est, e ubi spiritus domini, ibi libertas , e esse segundo elemento, a liberdade, é sempre percebido como perigoso, tanto pela autoridade eclesiástica, quanto pela civil.
IHU On-Line – Qual é o legado místico de Etty Hillesum , Ângela de Foligno e Marguerite Porete ? Quais são as peculiaridades da relação dessas mulheres com a transcendência?
Marco Vannini – Trata-se de três figuras femininas muito distantes não somente no tempo — Ângela e Marguerite do século XIII ao século XIV, Etty do século XX — mas também de características pessoais, meio ambiente, cultura, até mesmo religião, visto que Etty era de família judia. Diria em primeiro lugar que elas, juntas, mostram como a experiência mística tem sempre elementos essenciais comuns, não obstante as diferenças espaço-temporais, como disse anteriormente. Com a transcendência há uma relação apenas no sentido da ausência que poderíamos expressar, utilizando as palavras de outra grande mulher mística de nosso tempo, Simone Weil : “O contato com as criaturas nos é dado pelo sentido da presença, o contato com Deus nos é dado pelo sentimento da ausência. Em comparação com essa ausência, no entanto, a presença é mais ausente que a ausência”. Essa é também a herança mais importante que recebemos delas.
IHU On-Line – Qual é a importância do Nada na mística dessas três mulheres? E qual é a atualidade dessa compreensão e relação com a transcendência?
Marco Vannini – A resposta a essa pergunta está, pelo menos implicitamente, já contida na precedente. A experiência da ausência é, na realidade, “a mesma do nada e não há dúvida de que ela seja de singular atualidade no tempo presente, quanto o era na época do niilismo”. Essas mulheres mostraram que a experiência do nada não é somente negativa, trágica, mas pode ser sim extremamente frutífera, como purificadora de todos os ídolos, de toda a pretensa certeza. Acontece, portanto, que se mantém a orientação da inteligência, de toda a alma, em direção ao Absoluto, ou seja, a fé. Como não lembrar o que ensina São João da Cruz ? A fé não produz certezas, mas conduz na noite, isto é, no nada, mas é precisamente nessa noite, nesse nada, que resplandece a luz.
IHU On-Line – Como tais experiências místicas podem inspirar e dar sentido à existência em nosso tempo?
Marco Vannini – Também essa pergunta conecta-se às duas precedentes, e a resposta é similar. Estamos realmente em um momento em que a história e a ciência erodiram a crença de que a fé proporcionava até ontem. “O deserto cresce”, Nietzsche já advertia há um século e meio que cada parte é responsável pela a ausência de propósito, o nada no seu sentido mais trágico. Eis então que um testemunho como o de Etty, que descobre a presença de Deus no meio do campo de concentração nazista onde ela mesma está trancada por ajudar os seus compatriotas, e naquele horror foi capaz de pensar e escrever que estava bem assim, que tudo estava bem, assume um relevo verdadeiramente extraordinário, muito mais autêntico e convincente do que tanta teologia, para não falar das psicologias.
IHU On-Line – Qual é a principal peculiaridade sobre a mística de Maria, mãe de Jesus ?
Marco Vannini – Maria é mesmo o arquétipo da mística pelos traços que lhe caracterizam a figura — a única testemunhada nos Evangelhos — ou seja, humildade e desapego. São esses os elementos que compõem o vazio na alma, ou seja, matam o amor a si próprio e deixam o espaço à graça de Deus. Não é coincidência que ela é, desde o princípio, chamada de “cheia de graça”. Os grandes místicos de todos os tempos, de Orígenes a Meister Eckhart a Angelus Silesius , compreenderam muitíssimo bem como o nascimento do Filho, do Logos, não estava somente uma vez no ventre de Maria, mas em todo o tempo, em cada instante, em cada alma humilde e distante, que criou o vazio em si própria.
IHU On-Line – Que aproximações poderiam ser tecidas entre a mística cristã, a brahmane e a budista? Nesse sentido, quais são as sutilezas da mística de Mestre Eckhart e Herni Le Saux ?
Marco Vannini – Diria que, se for verdade, como é verdade, a mística é sempre substancialmente igual a si mesma, de modo que os grandes místicos de todos os tempos assemelham-se “desde quase a identidade”, como dizia Simone Weil; por outro lado, é também verdade que os vários místicos colocam ênfase em diferentes aspectos da experiência única. Reconhecer a realidade do espírito, matar o egoísmo de apropriação, extinguir o desejo, tornar vazio a si próprio são elementos presentes em cada mística, porém desenvolvidos e enfatizados em alguns mais que em outros. Sob esse aspecto diria que o cristianismo, o bramanismo e o budismo são complementares.
Coloquei De Eckhart a Le Saux como subtítulo do meu último livro Oltre il cristianesimo (Milano: Editora Bompiani, 2013) para evidenciar como, da Idade Média até hoje, a experiência de um “eu sou” no fundo da alma, é completamente idêntica a das palavras de Jesus: “Antes que Abraão existisse, eu sou”, constituía o núcleo essencial do cristianismo — “mais além” o cristianismo como teologia ligada aos tempos e lugares. A importância de Le Saux não é maior que a de Eckhart, mas, para nós, talvez, a mais significativa, uma vez que se trata de um nosso contemporâneo, com uma imagem de mundo que certamente não é medieval, e então passada por intermédio da cultura e da espiritualidade da Índia, que foi a que revelou o verdadeiro significado do cristianismo.
Quando várias correntes místicas compreendem cada uma o específico da outra, entendem que são gotas do mesmo mar.
Fonte: ihuonline.unisinos.br/artigo