Adulterações nas Obras Básicas
Aryanne Karine
No dia 18 de abril de 1857, Allan Kardec lançou o Livro dos Espíritos, tornando esta data um marco histórico para os adeptos e simpatizantes da doutrina trazida pelos nossos irmãos espirituais que tanto esclarece e norteia nossos passos, tirando-nos dúvidas há tantos séculos viventes em nossas consciências e iniciando a compreensão doutrinária, religiosa e científica de questões antes sem razão nem lógica, baseadas apenas pela fé puramente cega. No dia 06 de janeiro de 1868, faltando pouco para fechar o ciclo de três anos, Kardec lança livro que posteriormente iria, até os dias atuais, ser considerado como a quinta obra básica da codificação espírita, o livro A Gênese. Essas cinco obras inicias, tratam de trazer à tona a fé raciocinada, aquela que, com o amparo da ciência, faz sentido e baseia-se na mesma, para comprovar suas lições, caminhando sempre de mãos dadas com a razão, onde Kardec inclusive, por muitas vezes, orientando-nos a reconhecer a doutrina espírita como uma vertente científica, pelo seu poder de observação e pesquisa, do que compete ao plano da espiritualidade, bem como o nosso plano material.
Isso porque, assim como muitos contrários a doutrina Espírita na época de sua codificação, Allan Kardec também era cético nos efeitos mediúnicos e vida após a morte, criando ele, uma metodologia científica própria para conseguir validar os ensinos dos espíritos, onde conforme foi trabalhando nas questões, recebeu do alto que assim como os bons espíritos, que trabalham para nós instruir e auxiliar, existem também os que ainda não possuem um nível de evolução tão honroso, e poderiam, assim como ainda podem, utilizar do médium ou material usado na comunicação mediúnica para atrapalhar o trabalho proposto.
É um fato irrevogável a qualidade e veracidade do trabalho árduo que Allan Kardec teve para presentear-nos com as lições da espiritualidade, criando-o, uma metodologia séria que nunca abriu, dentre as pesquisas espíritas, precedentes a dúvidas ou controvérsias. Porém, justamente o último livro da codificação espírita, a muitos anos está envolvido em uma polêmica no meio editorial, a de adulterações da obra original.
Essa constatação foi feita, quando o escritor espirita Carlos de Brito Imbassahy, por volta do início dos anos 2000, levantou a polemica do então recém-chegado a sua 5º edição, o livro ‘A Gênese’, onde ao consultar terceira edição do original francês, constatou entre algumas alterações, sendo a mais grave, a retirada de um item que fez parte da obra até a sua quarta edição, item este que mencionava o desaparecimento do corpo físico de Jesus. Na época, Carlos, chegou a concluir que as adulterações foram feitas pelo então tradutor da FEB Guilon Ribeiro, pois esta edição teria sido feita após o desencarne de Allan Kardec, gerando por muitos, a constatação de adulteração.
O historiador Felipe Gonçalves por volta de 2009, resolveu então, ir em busca da veracidade dos fatos e descobrir se realmente Guilon era o responsável pela adulteração depois de muitas especulações na época. Onde relata que:
Munido desse material e motivado pelo interesse em desvendar o assunto, reuni-me com o espírita João Donha, do Paraná, e iniciamos uma minuciosa pesquisa. A primeira coisa que fizemos foi comparar as quatro primeiras edições da obra, publicadas por Kardec em 1868, e constatamos que elas eram idênticas. Depois, passamos para a análise da 5ª edição, publicada em 1872 (após o desencarne de Allan Kardec), e apresentada pelos editores como revue, corrigée et augmentée (revista, corrigida e aumentada). Ao analisar a obra, constatamos o que os editores anunciaram: a 5ª edição aparecia com muitas diferenças em relação às edições anteriores. Isso isentava Guillon Ribeiro das acusações precipitadas de Carlos Imbassahy. Mas, e quanto às alterações? Quem as teria feito? Mergulhamos de cabeça no assunto, consultamos diversas fontes do período, mas, na ausência de provas materiais que nos permitissem chegar à autoria das alterações, não pudemos chegar à uma conclusão. ¹
O fato é que desde o princípio do levante dessas informações, há muita especulação não somente sobre o responsável por tais alterações posteriores ao desencarne de Kardec, bem como se não foi o próprio quem revisou e alterou alguns trechos de sua própria obra, o que é comum no lançamento de novas edições no ramo editorial, ainda mais se tratando de uma obra recente, onde se descobria e ainda se descobre muito do que a espiritualidade tem a nos oferecer.
Em seu livro Doutrina Espírita Sem Segredos, a autora Evelyn Freire nos traz referências envolventes desse tema, onde nos elucida com a seguinte reflexão:
“(…) A Gênese foi adulterada, inclusive com a exclusão de conceitos doutrinários firmados por Allan Kardec. Esses conceitos ficaram desconhecidos por 150 anos. Em vida, Kardec publicou quatro edições idênticas à primeira, no decurso do ano de 1868. Entretanto, desencarnou em março do ano seguinte e, em 1872, comandando a continuidade das obras de Allan Kardec, Pierre Gaetan Leymarie, dissidente inconformado com os conceitos fundamentais apresentados em A Gênese, acabou realizando exclusões ao texto original e publicando uma quinta edição revisada, corrigida e aumentada que não correspondia à original’²
É importante salientar que, talvez o problema maior não esteja em descobrir o autor das alterações, mas compreender o que levou a nova edição a mudar o seu conteúdo que até então permanecia fiel à primeira edição, sem nem ao menos expor uma nota no rodapé ou esclarecer o motivo das alterações pós desencarne do autor, o que, automaticamente, abriu precedentes á muitas especulações, pois não se trata de uma obra qualquer, e sim, conceitos doutrinários de uma obra que aborda a vertente científica da doutrina espírita, e é uma das bases de pesquisa e divulgação da mesma.
Como se somente essa polêmica em torno de uma obra tão significativa não fosse o suficiente, temos ainda a recente descoberta oriunda de uma grande pesquisa do escritor e também pesquisador Paulo Henrique de Figueiredo que após um trabalho minucioso com arquivos originais, constatou não só o que já havia sido exposto, mas também, a adulteração na penúltima obra da codificação espírita, o livro O Céu e o Inferno. Em uma entrevista, o escritor comenta:
‘Desde julho de 2019, vários grupos de pesquisa tiveram acesso aos documentos da Biblioteca Nacional da França e dos Arquivos Nacionais quanto às edições da obra O céu e o inferno. Na pesquisa efetuada pelo coautor de minha obra, Lucas Sampaio, nos grandes e empoeirados livros de mais de um século, nos Arquivos de Paris, ele encontrou o depósito legal n. 5.819, da quarta edição de O céu e o inferno, registrado em 19/7/1869, à página 117 do documento F/18(III)/124. Sendo após a morte de Rivail, trata-se de adulteração. Na França, como ocorreu com A Gênese, a União Francesa, responsável pela publicação da obra, já voltou à edição original de Kardec, assim como na Argentina. No Brasil, estamos preparando a edição em português. O mundo inteiro está restaurando a verdadeira voz de Kardec. São alterações seríssimas. O adulterador tinha em vista implantar as ideias de castigo divino, carma, sofrimento como pena divina, queda e outros dogmas, implantando textos jamais escritos por Kardec em O céu e o inferno. Também retiraram ideias fundamentais quanto à moral autônoma, responsabilidade moral, a liberdade como lei divina. Será um resgate trabalhoso, exigindo estudo e dedicação dos espíritas. Mas será a restauração da verdade’³
Nesta mesma entrevista, Figueiredo menciona que as outras três obras da codificação espírita estão em suas versões originais, portanto não possuem a mesma problemática quanto ao trabalho de Leymarie pós desencarne de Kardec. Importante mencionar também, que existe uma lei moral, quando após o óbito do escritor, não tendo ninguém o direito de alterar suas obras em seu nome.
O que talvez seja de imensa relevância para nossa reflexão é, quantos séculos a humanidade viveu controlada por uma fé cega, de um Deus castigador, onde os que detinham os grandes conhecimentos, acabavam limitando o acesso ou deturpando as mensagens conforme a comodidade de seus interesses. Assim de mesmo modo, podemos trazer uma fala ainda do escritor e pesquisador Figueiredo que nos elucida não só a refletir sobre essa possível intenção nas adulterações, bem como a descoberta de suas pesquisas de trechos retirados da obra de Kardec mesmo após seu retorno ao plano espiritual:
‘Foram muitos trechos significativos retirados de O céu e o inferno que demonstram as conclusões de Kardec quanto à doutrina moral espírita. Neles, ele explica que o Espiritismo supera os dogmas presentes em sistemas criados pelos homens, pelos conceitos baseados nas leis naturais deduzidas das milhares de comunicações dos Espíritos, em diversos estágios evolutivos. Isso faz da metafísica e da moral uma ciência, pelo método de pesquisa espírita. Ficamos privados desses ensinamentos em virtude da adulteração. Logo no segundo item das Leis da Justiça Divina, capítulo 8 da edição original (que se tornou o 7 na versão adulterada), Kardec havia escrito: “Sendo todos os Espíritos perfectíveis, em virtude da lei do progresso, trazem em si os elementos de sua felicidade ou de sua infelicidade futura e os meios de adquirir uma e de evitar a outra trabalhando em seu próprio adiantamento”. Essa é a mais clara e profunda definição da autonomia moral espírita. Desse modo, a felicidade não é uma concessão ou graça divina, mas uma conquista do próprio ser. Também a infelicidade não é um castigo, mas uma condição criada quando o Espírito desenvolve uma imperfeição, e termina quando ele próprio a desfaz. As vicissitudes do mundo material não são jamais castigos, mas, sim, oportunidades para o desenvolvimento do Espírito. Este mundo, portanto, não é uma prisão, e sim uma escola de aplicação.’⁴
Mas qual a relevância dessas informações em nosso meio espírita? As obras básicas são os pilares centrais de toda a doutrina dos espíritos, nelas são embasadas todas as obras posteriores doutrinárias, romances, ou qualquer conteúdo produzido de acordo com as lições dos espíritos. Deturpar a mensagem dessas obras ou então remover itens que seriam de auxílio para nosso progresso, torna um pouco mais árdua nossa jornada.
Obviamente, temos que ter o discernimento de que não é porque a pessoa é espírita que é perfeita, bem como, os que possuíram, possuem e possuirão poderes e status em altos cargos no movimento espírita não estão ilesos a erros, apesar de, enquanto encarnados, termos a tendência de tornar maiores os que trabalham em prol da doutrina, somos todos irmãos e iguais, e assim como os que alguns que estão no meio podem ter o intelecto mais desenvolvido que a moral, muitos que não são detentores de cargos ou status, podem possuir uma moral mais evoluída que o intelecto, quando não os dois estando na escala evolutiva talvez até a frente dos que se dispõe a ‘grandes atividades’.
Nós ainda estamos sujeitos a erros, assim como outrora, ou os responsáveis por essas adulterações pós-desencarne de Kardec, não podemos julgar o nosso próximo, pois se estamos vivendo no mesmo orbe dos que aqui erraram, é porque também somos falhos e o que nos difere é somente a falta de nossos erros. Afinal, não seria então esse o maior mandamento? Amar o próximo como a si mesmo?
Que ao invés de findar nossa energia em procurar motivos ou culpados, que busquemos voltar ao foco principal que é a mensagem tão bem elaborada na codificação das obras básicas e tomar não só para ganho de conhecimento, mas para uma nova forma de pensar e agir, vivendo as lições e mensagens em nosso íntimo, transformando-nos em seres melhores a cada amanhecer, para que não sejamos apenas acumuladores de conhecimento, mas a doutrina viva a evangelizar e espalhar os frutos dessa boa nova através de nossos exemplos.
Aryanne Karine
REFERÊNCIAS:
¹ Espiritualidade e sociedade, A polêmica da Gênese. Disponível em: {http://www.espiritualidades.com.br/Artigos/i_autores/INCONTRI_Dora_tit_Polemica_da_Genese-A.htm} Acesso 11/01/2021
² CARVALHO, Evelyn Freire de. Doutrina Espírita Sem Segredos – Série Conhecendo o Espiritismo, Editora Letra Espírita – Campos dos Goytacazes RJ; 2019 pág 83
³ Folha Espírita, Adulteração em o céu e o inferno de Kardec. Disponível em {https://www.folhaespirita.com.br/jornal/pesquisa-indica-adulteracao-em-o-ceu-e-o-inferno-de-kardec/} Acesso: 11/01/2021
⁴ Folha Espírita, Adulteração em o céu e o inferno de Kardec. Disponível em {https://www.folhaespirita.com.br/jornal/pesquisa-indica-adulteracao-em-o-ceu-e-o-inferno-de-kardec/} Acesso: 11/01/2021
Fonte: Blog Letra Espírita