A Publicidade e o Mestre do Gozo

– Extraído do site: www.outrascrateras.blogspot.com.br –

Como bem lembrou Eugênio Bucci em vários de seus artigos sobre televisão para a Folha de S. Paulo e o Jornal do Brasil, o apelo psicológico comum a todas as formas de publicidade visa à dinâmica da inclusão e da exclusão. A publicidade, escreve Bucci, vende sempre a mesma coisa: a proposta de uma inclusão do sujeito às custas da exclusão do outro. A identificação do espectador como consumidor do produto que se apresenta como capaz de agregar valor à sua personalidade promove sua inclusão imaginária no sistema de gosto, na composição de estilos, que move a sociedade de consumo. Goza-se com isso: não tanto da própria inclusão (que pode não passar de uma fantasia), mas da exclusão do outro. O que a publicidade vende, portanto, é exclusão.

Os deuses do acaso dispõem as mercadorias em circulação no mundo contemporâneo como o antigo Deus cristão dispunha das forças da natureza para abençoar ou castigar seus fiéis. Uma nova versão imaginária do Outro ocupa o lugar – lugar de um Ser onipresente, onisciente e onipotente – deixado vazio quando parte da humanidade deixou de orientar suas escolhas a partir da crença no Deus judaico-cristão. Um Outro que enuncia o que deseja de nós e promete suas bênçãos para aqueles que melhor se dispuserem a atender suas demandas. Este Outro pode ser, simbolicamente, o Mercado, filho enviado à terra por seu Pai, o Capital – abstrações sem nome e sem rosto que determinam nosso destino e, de um lugar simbólico fora do nosso alcance, nos submetem às leis inflexíveis do seu gozo. Pautar escolhas de vida segundo os ditames do Mercado, ou do Capital, para a maioria das pessoas, parece mesmo uma questão de fé. Mas este novo Deus laico cuja face ninguém vê enuncia seus desígnios por meio da palavra revelada a seus sacerdotes; digamos que estes sejam os mestres da publicidade. São eles que exibem as imagens espetaculares de Deus no altar onipresente da televisão.
Se o Outro é uma instância simbólica para a qual cada sociedade inventa uma versão imaginária, hoje o laço social é organizado com referência a um Outro emissor de imagens que se oferecem à identificação e apelam ao gozo sem limites.

Fetiche, conceito compartilhado pela psicanálise de Freud e o materialismo histórico de Marx. Em cada um desses autores o conceito de fetiche opera como analisador de uma dimensão das relações humanas: a sexualidade (em Freud), a exploração do trabalho (em Marx). Entre o marxismo e a psicanálise, a essência da idéia de fetiche – cuja origem remonta à adoração dos ícones sagrados em algumas religiões antigas – é a mesma, mas os campos onde o conceito opera são diferentes. O que pretendo discutir é que, na sociedade contemporânea, as duas dimensões do fetichismo coincidem: o fetiche que apaga a diferença sexual encarna-se no fetiche da mercadoria, condição da circulação do que imaginamos ser a riqueza (expressa por meio das mercadorias) na sociedade moderna.

Em Freud, o fetiche é o objeto capaz de encobrir a falta já percebida pelo sujeito, inaugurando neste a possibilidade de sustentar, diante das evidências da castração, uma dupla atitude – de saber e negação do saber – que pode ser resumida na formulação: “eu sei, mas mesmo assim…”. Por um lado, a dupla atitude diante da castração revela que, embora o sujeito tenha sido barrado pela Lei, as representações edipianas não sucumbiram todas ao recalque.

Em Marx, o conceito de fetiche (da mercadoria) remete ao brilho da imagem/mercadoria produzida nas condições do trabalho alienado sob o capitalismo industrial; o fetiche da mercadoria também encobre a dimensão da falta, se considerarmos que encobre o conflito que existe em sua origem, isto é: uma relação de exploração entre pessoas, no processo de sua produção. Uma relação entre pessoas é entendida pela sociedade como uma relação entre coisas, escreve Marx. A expropriação de tempo da vida do operário cedida gratuitamente ao capitalista na forma da mais-valia é entendida como produção de riquezas.

A mercadoria que brilha como pura positividade, como máxima expressão de riqueza, é um fetiche em função de sua capacidade de ocultar a miséria, a exploração e a morte investidas em seu corpo. Nas sociedades de consumo, o fetichismo é a normalidade. De uma forma ou de outra, em nossa religião cotidiana, participantes do sistema mágico que explora o trabalho como se isto fosse um bem, somos todos adoradores dos bezerros de ouro.

O que ocorre com os neuróticos, individualmente, quando, em vez da neurose obsessiva, é a perversão que dita as condições do laço social? A paixão da instrumentalidade é a via para entender os efeitos da perversão social sobre o neurótico.

A neurose é o negativo da perversão. Assim como o negativo de um filme contém as mesmas imagens da foto revelada, a neurose mantém recalcadas, inconscientes, as representações do gozo sexual que o perverso conhece e revela. Neste sentido, o que o perverso realiza na privacidade de sua alcova pode ser menos problemático, do ponto de vista ético, do que a satisfação que o neurótico obtém por meio do sintoma, já que o sintoma está sempre articulado ao Outro e, portanto, ao laço social.

O convite à perversão nas sociedades de consumo contemporâneas, regidas pelo imperativo publicitário do gozo – “tudo ao mesmo tempo agora” –, parece uma caricatura das fantasias eróticas do marquês de Sade. Sade queria um Estado republicano em que o gozo fundamentasse a Lei.

Na fase consumista do capitalismo contemporâneo a verdadeira mola do poder não é mais a repressão dos representantes pulsionais, mas a administração do gozo.

Entre os muitos recursos utilizados pela publicidade, a pornografia faz parte dos discursos circulantes e das mercadorias consentidas socialmente; o sexo se transformou em grande força econômica, ao mesmo tempo que assistimos ao desaparecimento dos saberes eróticos, na linha apontada por Foucault: as ciências sexuais substituíram progressivamente, na modernidade, a arte erótica da Antiguidade e do Oriente. Hoje, o lugar moral que era reservado ao sexo até  metade do século XX foi ocupado pela cultura das “sensações corporais” e das tecnologias da saúde, enquanto as mais variadas imagens da cópula se oferecem a quem circula nas ruas, a quem assiste televisão ou lê jornais, como pequenas amostras grátis que antecipam o gozo associado às imagens das mercadorias.

O imperativo do gozo, expresso na mensagem no limits que identifica uma simples marca de tênis, propõe que cada sujeito, individualmente, alcance para si um lugar acima dos outros, à margem da Lei. “Seja um tiger”, ordena um outdoor que oferece não me lembro qual produto para aumentar as chances dos mais aptos (ou dos mais espertos) na selva darwiniana da concorrência instituída pela acumulação de capital. Um tiger, o predador mais forte e mais voraz diante do qual todos os outros devem se intimidar.

A repetição incansável desse tipo de apelo faz-nos perceber a vida social como cada vez mais ameaçadora. Os significantes mestres, que são dispositivos reguladores do gozo, vêm se desdobrando em torno de mandatos da ordem do no limits.

Maria Rita Kehl- A Publicidade e O Mestre do Gozo

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