(Extraído do site outrascrateras.blogspot.com.br/ . . .)
domingo, 27 de fevereiro de 2011
O senso comum indica o psicólogo como o profissional mais preparado para dar conta da sexualidade. Pelo menos assim pensam os colegas formados em outras disciplinas, com quem trabalhamos na escola, nos serviços de saúde ou nas empresas. Será? Parafraseando um texto clássico da antropóloga Carole Vance (1991/1995), nesse ensaio quero sugerir que as psicologias, e o ensino de psicologia no Brasil, precisam redescobrir a sexualidade interpelados pela fecundidade da abordagem construcionista adotada nos artigos desse dossiê neste volume 13, número 4 da Psicologia em Estudo.
“Não é incrível? No momento em que eu peguei o vírus da AIDS, eu não estava ali me contaminando… era muita paixão! Foi um momento de alegria, de prazer, tanto tempo desejado… Prazer corporal, mas espiritual também. Queria viver aquele meu amor, repetir outros momentos, iguais àquele” (L., 1987).
A pesquisa social e epidemiológica nos informava desde 1985 que uma cena como a de L. poderia ser masculina ou uma história feminina, de amor heterossexual ou homossexual, de alguém bem jovem ou de pessoas na meia idade… não sei como o leitor a imaginou. Já sabíamos que o vírus não escolhe sexo, idade, religião, classe social, país ou continente, e se expande em contextos de maior vulnerabilidade social. “Quando pegamos Aids não estamos pegando Aids, estamos fazendo outra coisa…”.
Depoimentos como estes ilustrariam cenas típicas “da transmissão do HIV”, embora o discurso da prevenção do HIV/Aids raramente se refira ao momento da infecção pelo HIV nestes termos. Fala-se de comportamentos e práticas sexuais de risco, sem sentido, sem contexto, sem pessoa. Como discutiremos a seguir, a abordagem “sexológica” afirmou-se respondendo a “problemas” demográficos ou de saúde (mental ou sexual), contribuindo para produzir os discursos que Foucault chamou de bio-poder. A abordagem construcionista definiu como questão compreender a sexualidade como fenômeno social, a desigualdade entre os sexos, a subordinação das mulheres, a discriminação sexual; nas últimas três décadas dedicou-se fortemente a compreender a epidemia da Aids e a violação de direitos sexuais.
Durante todo esse período, coexistiram nos discursos tecno-científicos concepções sobre “a” sexualidade ancoradas nas noções de impulso, de força natural de imenso poder, poder que se opunha à civilização e à cultura. Culturas e sociedades apenas respondiam a essa força essencial, natural, essencialmente diferente entre homens e mulheres, considerada normal quando heterossexual. Com algumas nuances, esses teóricos de diferentes disciplinas concordavam que, se a ciência produzisse teorias sobre a sexualidade e revelasse sua natureza, a humanidade seria beneficiada por um maior equilíbrio entre indivíduo e sociedade ou para relações sexuais naturais e saudáveis, a normalidade biológica teria sido “revelada” pelo laboratório e a normalidade estatística pelas pesquisas sobre crenças, atitudes ou práticas sexuais de populações e grupos.
Em outras palavras, embora atuem com base em sua autoridade técnica e científica – de psicólogos, educadores, médicos, assistentes sociais, enfermeiros, professores de primeiro e segundo grau – raramente foram formados para lidar com a sexualidade em contextos que não sejam propriamente terapêuticos. Normatizam o sexo desejável, nomeando-o como “mais saudável”, baseados em valores e noções pessoais que reinterpretam a sofisticada teorização sexológica do século XX.
No final dos anos 60, o sexo inicia sua emancipação da essencialidade e da reprodução. A verdade sobre o sexo como vida instintiva ou impulsiva começou a ser questionada por teóricos dos movimentos feminista e homossexual que contribuíram definitivamente para a explosão de estudos no campo das ciências humanas e sociais, aprofundando a crise do paradigma sexológico. Essa perspectiva crítica tem sido chamada de construcionista (contructionism) – o discurso construcionista1 re-definiu o gênero e a identidade sexual, separou a identidade das práticas sexuais, questionou o determinismo biológico, construiu a história da homossexualidade e da origem da dominação masculina.
A categoria gênero, contribuição definitiva da teoria feminista, foi consagrada no final do século XX como relevante categoria de análise social. Bastante citada, a historiadora Joan Scott (1995) definiu-a como constituinte das relações sociais e de poder fundadas sobre as percepções das diferenças entre os sexos.
Chama de “Sexo” (maiúscula) o termo descritivo para as diferenças anatômicas básicas, internas e externas, que diferenciam o homem da mulher; chama de “gênero” a diferenciação social entre homens e mulheres; de “sexualidade” uma “descrição geral para série de crenças, comportamentos, relações e identidades socialmente construídas e historicamente modeladas relacionadas ao que Foucault denominou “o corpo e seus prazeres” (Foucault, 1984).
Ao invés de pensar que o sexo teria prioridade na explicação do comportamento, da cultura, da civilização e da sociedade (interpretado com base em regras de parentesco, libido, repressão e tabus) passou se se a pensar como a atividade sexual (física e simbólica) poderia configurar outras atividades sociais, expressando conjugalidade, trabalho, política, negócio ou religião.
Como insistiu J. Weeks ao longo de sua obra: qualquer coisa pode ser sexualizada, nada seria intrinsecamente sexual.
Os modelos teóricos de construção social do gênero e da sexualidade, de qualquer maneira, variam na sua radicalidade. Vance (1991/1995) observou que o construcionismo mais radical considera que até o desejo sexual é construído pela cultura e pela história a partir das energias e capacidades do corpo; não existiria, portanto, “impulso” ou “pulsão sexual”, não se assumiria que funcionamentos ou sensações fisiológicas sejam intrínsecos, nem talvez necessários.Uma posição mais moderada aceita implicitamente um desejo inerente que será construído em atos, identidade, comunidade e escolha de objeto.
Seria injusto atribuí-la exclusivamente a Michel Foucault, que certamente produziu nesse processo o trabalho definitivo e mais conhecido sobre a sexualidade (História da Sexualidade, 1976/1988, 1984/1990). Abordando a sexualidade no contexto de sua obra sobre saber e poder, Foucault superou o desconforto provocado por essa área de investigação quase marginal ao mainstream acadêmico, associada ao feminismo e à crítica homossexual. (Vance, 1991/1995) Antes da obra de Foucault, entretanto, o construcionismo social americano de Simon & Gagnon e de Rubin já influenciava a produção marginalizada e a história da sexualidade em vários continentes era profícua
como reflexão sobre a gênese da subordinação feminina ou como história da homossexualidade.
Um indivíduo será sempre produto da interação recíproca de muitos outros.
O alcance da auto-consciência se dá por meio do outro, requer se colocar no lugar do “outro generalizado”, do surgimento do outro no self. A inovação será fruto do fluxo ininterrupto da consciência espontânea da individualidade3 (do “I”) relacionada à individualidade que foi configurada ou moldada pela sociedade (ao “Me”). O self é processo que ocorre na relação do Me (mim) com o I (eu). Vivemos a pluralidade do sujeito que deve multiplicar sua agilidade na mobilização de scripts distintos, em diferentes cenas.
Enrique Malo, por exemplo, ao pensar nas subjetividades de classe articuladas à dominação de gênero, discutirá que não haveria apenas um “outro generalizado”, mas vários “outros generalizados que constituem nossos auditórios interiorizados, aos quais replicamos” (Malo, 2007, p. 17).
Em recente entrevista, J. Gagnon afirmou que reduzir as coisas a textos e discursos seria um erro de Foucault, na medida em que a vida social consiste de atuações e interações, de pessoas atuando em espaços sociais. Indicou que a noção de scripts para a conduta sexual que sua obra introduziu “aproxima-se mais do performativo que do discurso” (Gagnon, 2006, p. 416). Ao pensar a atividade sexual o autor começou pela situação psicossexual, pensando-a como um processo em cujas contingências as pessoas assimilam estilos de vida e, ao colocá-los em prática, modificam o eu. Num segundo momento, abordou o mundo intersubjetivo da cultura, os “cenários culturais” definidos por ele como “o sistema semiótico de instruções que é o espaço intersubjetivo do sóciocultural”.
Os arranjos sociais onde a sexualidade se realiza comporiam uma matriz que teria, num eixo, os eventos roteirizados (“scripts”) e, em outro eixo, os “atores”.
Prefiro atualmente não traduzir a palavra script como roteiro. Script, palavra incluída nos dicionários da língua portuguesa, indica mais diretamente a inspiração dramatúrgica e ao mesmo tempo a noção de “prescrição” que mantém em inglês.
Como discutimos mais detalhadamente em outros textos (Paiva, 2000, 2006), cenas densamente descritas são um valioso recurso metodológico que pode ser coproduzido numa entrevista, na resposta a um questionário, narradas ou dramatizadas em abordagens individuais ou em grupo, em redações e trabalhos escolares, compartilhada num encontro clínico com um nutricionista, ginecologista, infectologista ou num centro.
Uma comunicação efetiva permitirá que o pensar informado pela normalidade técnica dialogue com a normatividade compartilhada em cada local, dialogue com “outros generalizados”.
Vera Paiva
http://www.scielo.br/pdf/pe/v13n4/v13n4a02.pdf
Postado por Marcela às 05:52 Nenhum comentário:
Marcadores: educação sexual