A DOCURA, A DOCILIDADE E A FIRMEZA
Os reiterados discursos em torno da caridade nem sempre levam o ouvinte a entender corretamente o significado desta virtude essencial. Talvez por desconhecimento acerca do significado real e da extensão que o conceito desta virtude atinge com o Espiritismo, expositores acabam por reduzi-lo.
O conceito de caridade surgiu muito antes da era cristã, porém, somente com Jesus e com os expoentes do pensamento cristão é que se desvinculou totalmente das suas origens romanas. Apóstolos, bispos, teólogos e filósofos procuraram através dos tempos definir o conceito de caridade; começando por Paulo de Tarso no cristianismo nascente, passando pelo genial Agostinho de Hipona, bispo, teólogo e filósofo, no inicio da idade média, por Pedro Aberlardo e Tomás de Aquino, quase no final dela, e por Vicente de Paula, pelo Cura D`ars e por Alfonso de Liguori, na idade moderna, entre outros. Apesar de todos estes esforços foi somente com Kardec que eles foram sintetizados. Em apenas um parágrafo inscrito no capitulo “Sede Perfeitos” de o “Evangelho Segundo o Espiritismo”, o codificador resumiu mais de dois mil anos de especulações acerca da caridade. Naquela simples afirmação, que passa quase despercebida ao leitor desatento e com cultura não tão profunda, ele despretenciosamente coloca o ápice de todos os esforços especulativos que o antecederam. Muitos foram os que contribuíram para esclarecer, no campo do conhecimento, este conceito central para o cristianismo, mas não poderíamos relacioná-los neste momento.
Apesar da obra esclarecedora destes luminares ainda hoje, mesmo no meio espírita o conceito de caridade continua sendo interpretado de maneira reducionista. Nós brasileiros fomos e somos prejudicados pela nossa formação histórica e cultural. A passividade é uma das mais fortes características do nosso povo. Devido a isto, observo em diversos articulistas e escritores, porém muito mais nos expositores espíritas uma séria distorção doutrinária quando lançam sobre o público despreparado ideias incoerentes sobre a caridade, levando-o a acreditar que não existe caridade fora da passividade.
A racionalidade, essa faculdade humana que não nos teria sido dada por Deus se não fosse para que a usássemos, e base mesmo da fé espírita, é jogada para o lado como se não tivesse valor. A crítica, no seu sentido original e não no pejorativo, é uma manifestação dessa fabulosa faculdade. Analisar, ponderar, decidir pelo melhor e agir é característica de espíritos que já ultrapassaram o limiar que separa os que pensam e tem coragem de agir daqueles que ainda procuram desculpas para as suas omissões. Geralmente mascaram o medo que os domina afirmando que apenas são prudentes, confundindo prudência com cautela.
A figura de Chico Xavier serviu e serve ainda para muita gente esquivar-se da grande responsabilidade que é declarar-se e ser genuinamente espírita, pois apoiam-se na imagem de um velhinho simpático, compassivo e passivo, quando a verdade é que Chico era um gigante da ação, um homem simples que não se amedrontava diante das dificuldades e ações equivocadas dos seus companheiros de ideal; muito menos se deixava ser usado por interesses nem sempre alinhados com a caridade.
No livro “A Trajetória de Um Médium” de Carlos A. Bacelli, Luiz Carlos Barbosa Nunes e Paulo de Tarso Manso, editora LEEPP – Livraria Espírita Edições Pedro e Paulo é relatado o seguinte.
(…) Eu fui secretário da CEC [Comunhão Espírita Cristã] e participei da célebre reunião em que Chico [Xavier] se desvinculou, fundando o Grupo Espírita da Prece.
– Por que Chico saiu da Comunhão Espírita Cristã? Basicamente, porque não vinha concordando com a ação de alguns de seus diretores. A Comunhão cresceu muito – não se parava de construir e de fazer campanhas ampliatórias. Aquilo constrangia o médium que, de certa maneira, se sentia usado. Os diretores mais antigos o pressionaram para que ficasse, mas ele se mostrou irredutível. Recordo-me como se fosse hoje: Chico, com sua palavra firme e batendo com a mão espalmada sobre a mesa, dizendo: – “Enquanto vocês se consagrarem ao trabalho da caridade, Jesus não consentirá que nada lhes falte… Chico Xavier não vai fazer falta alguma!” É que os diretores, no intuito de fazê-lo mudar de ideia, alegavam que, sem ele, as tarefas assistenciais da Instituição não poderiam seguir adiante.
– À época, quantos anos você tinha? Pouco mais de vinte, ainda. Estava, praticamente, começando na Doutrina. Ao se levantar para ir embora, Chico virou-se para mim e disse, apontando a cadeira em que, habitualmente, se sentava para psicografar (eu estava completamente atordoado!): – “Agora, você tome cuidado, porque vão querer colocar você sentado ali…”
– Chico não possuía temperamento dócil? Dócil, mas não passivo. A disciplina que ele se impunha abrangia também as suas convicções pessoais. Chico foi o espírito mais determinado que tive oportunidade de conhecer nesta encarnação. Não tomava decisões precipitadas, mas, quando as tomava, dificilmente voltava atrás.
O que este relato demonstra é que nas ações caritativas, sejam elas beneficentes ou benevolentes, materiais ou espirituais, a firmeza não está dissociada da doçura. A firmeza, algumas vezes levada até as ações e palavras mais enérgicas, não é ação anti-caridosa. Firmeza significa perseverança no ideal, conduta constante rumo a um determinado fim, sem desvios.
No entanto, devemos diferenciar doçura de docilidade. O autor do relato nos diz que chico era dócil. Eu acredito que realmente ele era assim. Mas docilidade quer dizer maleabilidade, ser conduzido com facilidade. Chico era um médium dócil para Emmanuel, por exemplo. A doçura, por sua vez quer dizer que alguém é afável, sem asperezas, não é rude nem trata os outros com indelicadeza. Chico combinava todas estas virtudes de uma maneira especial. Era doce, dócil e firme, quer dizer, observava, escutava, falava sem agredir, mas, para usar uma expressão popular, mas ninguém o “levava no bico” ou o “tirava pra cumpadre”. Enfim, era doce porém firme em suas decisões, sem deixar por isso de ser um exemplo de homem de bem.
Não estou, aqui, fazendo a defesa de quem quer que seja, apenas apresento um relato que suponho verossímil e verdadeiro. Espíritos de escol, como Chico Xavier, não vem à Terra para brincar com coisas sérias; já abandonaram as indecisões e caminham rumo aos planos mais altos onde o medo é penas uma lembrança dos tempos de inferioridade moral.
Por Ivomar Costa