Por Eliana Haddad
Uma defesa de mestrado realizada pelo historiador Marcelo Gulão Pimentel levou para o Programa de Pós-Graduação em Saúde Brasileira da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG, um tema de interesse para espíritas e não espíritas, ao apresentar na academia o método utilizado por Allan Kardec para a investigação dos fenômenos mediúnicos.
A questão é de suma importância, porque toca em um dos pontos mais debatidos pelos céticos e pelos cientistas materialistas que não consideram o espiritismo ciência, muitas vezes pela falta de estudo e entendimento do método que Kardec buscou desenvolver para obter informações úteis e confiáveis sobre a dimensão espiritual do universo.
A tese teve orientação do professor dr. Alexander Moreira-Almeida e coorientação do professor dr. Klaus Chaves Alberto, respectivamente, coordenador geral e coordenador da área de ciências humanas do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde, que funciona na mesma universidade desde 2006. Participaram da banca examinadora o professor dr. Silvio Seno Chibeni, da Universidade Estadual de Campinas, e o professor dr. Gustavo Arja Castañon, da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Marcelo Pimentel concentrou sua pesquisa na leitura e análise de toda obra publicada por Kardec: seus livros e os doze volumes da Revue Spirite: Journal d’Études Psychologiques. Foram também obtidos e analisados documentos originais inéditos de Kardec, em viagem de pesquisa por um mês na França com o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais.
Como você analisa a importância de Kardec como pesquisador?
Allan Kardec foi importante, porque desenvolveu pesquisas pioneiras sobre os fenômenos mediúnicos. Ele propôs uma abordagem abrangente das manifestações mediúnicas que ocorriam na metade do século 19. Kardec buscou analisar as principais teorias a respeito do tema e concluiu que a hipótese da existência dos espíritos era aquela que melhor explicava o conjunto dos fenômenos observados.
Em que o método de Kardec se diferencia?
Kardec foi além dos demais pesquisadores, utilizando os médiuns como modo de acesso direto a dados empíricos a respeito do mundo espiritual. Para ele, o mundo relatado pelos espíritos não era metafísico, e sim uma parte do mundo natural ainda pouco explorado. Em diversas passagens da obra de Kardec podemos vê-lo comparando o mundo espiritual com o mundo microscópio. Algumas vezes ele fazia a analogia do médium como um microscópio do mundo espiritual. Kardec também se diferenciava pela busca ativa por informações a respeito dos princípios que integraram o espiritismo. Ele procurava ampliar sua base de dados empíricos utilizando diversos médiuns, muitas vezes desconhecidos uns dos outros. Enfatizava a descrição e a interpretação do conteúdo das mensagens obtidas durante o transe mediúnico, comparando semelhanças e diferenças entre elas em busca de informações úteis que pudessem integrar sua teoria. Kardec dava uma grande ênfase na análise do conteúdo das informações, sendo menos relevante a autoria das mensagens. No decorrer de sua pesquisa, contou com um número cada vez maior de correspondentes que foi de grande importância para a multiplicação dos relatos mediúnicos com os quais ele criou, desenvolveu e reformulou os seus princípios acerca do mundo espiritual. A Revista Espírita foi um espaço destacado de debates com os seus correspondentes, contribuindo para o amadurecimento das ideias a respeito do espiritismo. Pesquisador ativo, Kardec também se utilizava de casos históricos acerca dos fenômenos mediúnicos e também de pesquisas de campo, visitando médiuns e locais onde as manifestações espirituais se davam. Do conjunto de informações obtidas, ele desenvolveu a teoria espírita.
Quais as contribuições que uma melhor compreensão da metodologia do espiritismo pode trazer à ciência?
Pode contribuir para o debate acadêmico acerca dos fenômenos anômalos que envolvem experiências conhecidas como espirituais, psíquicas ou mediúnicas. Investigações históricas não só do método de Allan Kardec, mas também de outros pesquisadores que conduziram pesquisas sobre o tema poderiam retomar teorias e metodologias fomentadoras de novas abordagens empíricas, bem como tornar mais bem conhecida uma longa tradição de investigações no campo da mediunidade. No nosso grupo temos um doutorando, Alexandre Sech Júnior, que está investigando outro pioneiro, William James.
Há um crescente interesse no meio acadêmico sobre as relações entre espiritualidade e ciência. Por quê?
Cada vez mais tem surgido em diversas partes do mundo estudos sobre os impactos positivos da espiritualidade na saúde do ser humano e as suas implicações em diversos ramos da sociedade.
Em sua dissertação, você defende o caráter progressivo da pesquisa de Kardec. Por que isso aconteceu?
Kardec via o espiritismo como uma ciência, portanto passível de ser aprimorada e modificada. Em um primeiro momento, contava com um número restrito de médiuns (cerca de dez), contudo, à medida que esse número foi ampliado, devido à repercussão de sua obra em diversas regiões do mundo, ele passou a recolher uma base maior de dados, o que permitiu o aprofundamento de aspectos de sua teoria. É o que se pode perceber com a leitura do ‘Ensaio teórico das sensações dos espíritos’, publicado na segunda edição de O livro dos espíritos.
O ensaio é resultado de uma pesquisa que pode ser acompanhada desde a primeira edição de O livro dos espíritos, passando pelas edições da Revista Espírita de 1858 até o mês de dezembro, quando Kardec publica o artigo ‘Sensações dos espíritos’ em que apresenta suas primeiras conclusões sobre o tema. Este artigo ainda recebe algumas modificações baseadas na análise das informações dadas pelos médiuns entre 1859 e 1860 até a sua publicação na segunda edição de O livro dos espíritos, em 1860.
Você acredita ser necessário retomar os estudos sobre os aspectos históricos e filosóficos das pesquisas científicas sobre as relações entre espiritualidade e saúde?
Sim. Os estudos atuais nesse campo têm tido uma grande repercussão no meio acadêmico e na sociedade em geral. Contudo, pouco se sabe sobre a história dessas pesquisas. Estudos que busquem investigar suas tradições podem fortalecer essa área academicamente e fomentar novos trabalhos.
E na área da metodologia científica? Isso poderia provocar uma revisão de teorias?m que o Como historiador, é difícil medir o impacto desse estudo na área de metodologia científica. Em seus aspectos históricos, acredito que sim. Apesar da repercussão que o espiritismo teve entre pesquisadores renomados da Europa na segunda metade do século 19, e na história da saúde mental no Brasil, o método de Allan Kardec é pouco conhecido. Acredito que com mais discussões e estudos acadêmicos sobre Kardec e seu método de investigação a academia possa inseri-lo como um dos pioneiros das pesquisas psíquicas, em especial, da mediunidade. O espiritismo não foi suficientemente explorado em seu aspecto metodológico de investigação. Além disso, Kardec não buscou apresentar seus estudos sobre espiritismo no ambiente acadêmico.
Por que Kardec afirmava que o espiritismo não poderia ser enquadrado no mesmo ramo das ciências tradicionais, como a química e a física, mas sim como uma nova ciência?
Kardec oferece diferentes definições do espiritismo enquanto ciência ao longo de sua obra. Uma das mais citadas está na obra O que é o espiritismo? em que ele definiu o espiritismo como “uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal”. Nos parece que a principal razão para ele não enquadrar o espiritismo entre as ciências tradicionais diz respeito à delimitação de seu objeto de estudo. Enquanto a física e a química têm como base a investigação da matéria, o espiritismo investiga o ser pensante, o espírito. Além disso, para Kardec, o método quantitativo e os experimentos laboratoriais praticados por essas modalidades científicas não seriam adequadas para a investigação dos fenômenos inteligentes gerados pelo espírito.
O espiritismo continua um ‘grande desconhecido’, como já observara J. Herculano Pires?
Acredito que falta uma leitura mais criteriosa e aprofundada da obra de Allan Kardec, notadamente em seu aspecto metodológico. Principalmente o conhecimento que pode ser obtido a partir da leitura da Revista Espírita.
O que você descobriu de novo e como esse material foi utilizado em seu trabalho?método de Kardec se diferencia?
Durante o mês que estivemos na França, tivemos a oportunidade de conversar com diversos pesquisadores acadêmicos, como Marion Aubrée, Guillaume Cuchet e Renaud Evrárd, bem como pesquisadores e estudiosos da história do espiritismo, como Charles Kempf, Jérémie Philippe e Pierre Etienne. Visitamos diversos arquivos públicos e bibliotecas francesas em busca de fontes históricas sobre a vida de Allan Kardec e sobre o espiritismo entre 1857 e 1869. Com a valiosa ajuda de Charles Kempf, visitamos os arquivos da Union Spirite Française et Francophone em Tours, na França, e conseguimos coletar diversas cartas, diplomas e outros documentos que serviram de fontes de informação para a conhecermos melhor a vida de Hippolyte Rivail, onde foi possível constatar a sua vasta erudição como professor, escritor e membro de diversas sociedades científicas. Também conseguimos acesso a algumas cartas do Kardec aparentemente nunca publicadas. Ainda estamos analisando o conteúdo dessas cartas e pretendemos apresentá-las juntamente com a sua análise em um trabalho futuro.
Qual o papel de Kardec, na vinda do Consolador Prometido, com relação à equipe do Espírito da Verdade?
Kardec foi muito mais que um compilador ou secretário dos espíritos na constituição do espiritismo. Ele foi um pesquisador ativo em busca das informações que permitiram que ele constituísse a sua obra. Kardec afirmava que o espiritismo seria o trabalho de uma dupla revelação: a divina ou espiritual, por ter sido a partir das informações dos espíritos que ele teria realizado sua obra, mas também pela revelação científica, onde o seu papel como pesquisador foi fundamental na elaboração dos princípios que compõem o espiritismo.
Fonte: Publicado no jornal Correio Fraterno – edição 456 – março/abril 2014
http://www.correiofraterno.com.br/nossas-secoes/14-entrevista/1469-…