Trabalhando os Trabalhadores
Joana Abranches
Uma das coisas mais complexas no cotidiano de uma Casa Espírita é administrar as diferenças comportamentais entre os trabalhadores. Aqui e ali, por um motivo ou por outro, pipocam os atritos e melindres, muitas vezes encobertos pelo silêncio em nome da “caridade”, mas evidentes nos olhares atravessados, nos recadinhos indiretos e não raras vezes no afastamento inexplicável daquele companheiro que parecia tão entusiasmado… Quando chega a este ponto é que a guerra de persona, idéias e vibrações já atingiu o seu ponto máximo.
Não desanimemos. Onde há gente há problemas. Graças a Deus!… Porque onde há gente há também muito trabalho a ser feito e muita oportunidade de crescimento espiritual em contato com o outro. A grande questão é como trabalhar as tais diferenças de forma que, apesar delas, haja uma convivência realmente fraterna e saudável sem prejuízo do trabalho.
Todos somos diferentes e isso obedece a um propósito Divino. A natureza é assim. Se os iguais se atraem, os diferentes se complementam. Aquilo que para mim é prazeroso e fácil de realizar, já não é para o outro e vice-versa. É preciso apenas saber identificar, respeitar e integrar essas diferenças, abandonando aquele equivocado conceito de uniformidade que robotiza, que exige consenso em nome de uma harmonia questionável e disponibilidade integral em nome da dedicação; Que deixa implícita a exigência de todos rezarmos na mesma cartilha e de estarmos aptos e disponíveis todo o tempo a todo o tipo de tarefa na Casa Espírita se quisermos figurar no rol dos “trabalhadores da última hora”, dos “escolhidos”. Pronto. Já temos aí o estereótipo criado e “sacramentado”. Quem não se enquadrar está fora.
Este é o ponto. Os problemas nos Grupos Espíritas acontecem não por causa das diferenças, mas pela nossa inabilidade em trabalhar com elas enquanto trabalhadores e lideranças.
Lembremos que a diversidade das flores e ramagens é que confere a beleza e harmonia que nos encanta num jardim, mas por trás de tudo está o trabalho do paisagista, que traçou canteiros e reuniu espécies, combinando cores, formas e, sobretudo, considerando os níveis de resistência e fragilidade para dispor a localização de cada planta. O mesmo se dá na Instituição Espírita. Companheiros com características diversas de personalidade, amadurecimento e aptidão podem estabelecer uma perfeita harmonia em sua diversidade. Mas o “paisagismo” cabe aos dirigentes.
Quem não conhece no seu grupo, por exemplo, alguém que se encaixe no perfil trabalhador “Faz-tudo”? Isso mesmo. Ele parece ter mil e uma utilidades. Dinâmico, disponível, ágil, este companheiro pode ser extremamente útil na execução de atividades práticas. Mas não o chame para reuniões de planejamento porque ou não vai comparecer ou vai cochilar. Para ele é um martírio ficar parado.
Já tem aquele que é o “viajante de plantão”; é aquele companheiro idealista, que sonha, faz projetos para o futuro e de vez em quando chega com uma idéia fantástica que ele jura que foi uma inspiração do mundo espiritual (e não importa de onde venha se for viável e positiva). Excelente para atuar no planejamento, estruturação e reestruturação das atividades, com ele em cena não há acomodação que resista. Está sempre propondo, ousando, criando, buscando alternativas inovadoras para a solução de velhos problemas de uma forma que “ninguém tinha pensado nisso antes…” Mas na hora de desmontar uma mesa… é parafuso pra todo lado e martelada no dedo.
Ah, e que grupo não tem o “certinho”? Extremamente racional e organizado, tudo ele anota, quantifica, formaliza. Para ele tudo tem que estar “preto no branco”. Quem melhor para atuar na área administrativa? Afinal, registrar, fazer contas, controlar e distribuir recursos na medida certa é com ele mesmo.
Por outro lado, temos o “artista”, aquele que não abre mão do lúdico e está sempre a inserir música, teatro e outras manifestações de arte em todas as atividades. Graças ao seu espírito sensível e talentoso as reuniões comemorativas vão estar salpicadas daquela chama de emoção e entusiasmo tão necessária para reabastecer os ânimos e impulsionar pra frente. Ideal para desenvolver trabalhos que envolvam crianças e jovens, este companheiro sacode a mesmice, dá aquele toque de motivação e estimula como ninguém a integração fraterna.
Não poderíamos esquecer ainda do “paizão” ou “mãezona” do grupo. Afetivos, sensíveis, conciliadores, os companheiros com este perfil tem o poder de unir, reunir, apaziguar, conferir um sentido real de família à equipe. Sua habilidade em promover o diálogo e quebrar resistências quando há conflitos é imensa porque falam diretamente ao coração dos demais. Queridos e respeitados pelo amor e equilíbrio que irradiam, esses irmãos são fundamentais para a manutenção da paz na Instituição. São elementos que, entre outros, podem dar uma contribuição importantíssima nas reuniões de Atendimento Fraterno, pois possuem um elevado grau de afetividade que os dispõe naturalmente a acolher e abraçar os que sofrem.
Temos ainda o introspectivo, o extrovertido, o estudioso, o afoito, o ponderado, o questionador, o acomodado, o “modernoso”, o conservador e por aí vai. E quem de nós se aventuraria a discorrer sobre a maior ou menor importância deste ou daquele trabalhador, conforme os perfis aqui relacionados?
Na verdade, todos se completam. Todos são insubstituíveis e indispensáveis em suas peculiaridades porque – enquanto não conseguimos ser perfeitos – este é um excelente exercício de aperfeiçoamento, já que é imprescindível aparar as arestas para nos encaixar nesse desafiador quebra cabeças que é formar uma equipe onde somos chamados a trabalhar para nada mais nada menos do que Jesus.
Quando interiorizamos isto buscamos o entendimento. E quando buscamos o entendimento – olhem só que coisa maravilhosa! – as peças se encaixam. Enquanto uns sonham outros ponderam, enquanto uns planejam outros concretizam, enquanto uns organizam outros adornam, enquanto uns são música outros são livro, enquanto uns são silêncio outros são sonoridade. E assim vamos nós. Trabalhando com as diferenças e assegurando a continuidade da obra. Enquanto isso estamos crescendo, amadurecendo, aprendendo a fazer concessões, a ser voto vencido, a discordar sem “rosnar” e tantos outros exercícios de reforma íntima.
O grande e real problema é este radicalismo autoritário ainda tão impregnado nas lideranças, que inadvertidamente impõem o enquadramento de seres diferentes em um padrão de comportamento rígido e único. Todo mundo tem que pensar igual, tem que ter a mesma disponibilidade, senão é sinal de que não se esforçou o suficiente. Alguém aí tem um “esforçômetro”?
Sim, porque para medir o quanto cada companheiro está se esforçando para dar a sua contribuição, mesmo que aparentemente pequena, precisaríamos de um.
O segredo é nos valer das diferenças para potencializar o trabalho. Ninguém espere mar de rosas. Impossível não haver conflito onde existe diversidade, imperfeição e forças espirituais contrárias prontas para acionar o estopim do orgulho e da vaidade tão presentes ainda em todos nós. Aqui é aquele companheiro veterano que rejeita as novas idéias dos recém-chegados porque só ele é o detentor absoluto da experiência; ali é outro que chega querendo mudar tudo, desconsiderando aqueles que ali já estavam muito antes da sua chegada construindo o que ele encontrou; Acolá é aquele que quer colocar o mundo dentro da casa espírita; mais além é aquele outro que quer tirar a casa espírita do mundo… e um sem fim de situações corriqueiras no cotidiano espírita.
Cabe às lideranças estabelecer um processo de observação e pacificação. Há que se administrar os conflitos para que as relações não sejam abaladas, pois o relacionamento interpessoal é a coluna vertebral da Casa Espírita; se ele está abalado, não se caminha ou se caminha para o caos. E não adianta julgar. Não adianta vir com aquele discurso que o fulano é espírita e deveria agir assim ou assado, porque todos nós sentimos na pele a dificuldade de sermos na prática tudo o que, teoricamente, sabemos que precisamos ser. Como já dizia o meu velho e sábio avô “muitas pessoas entraram para o Espiritismo, mas o Espiritismo ainda não entrou nelas”… e por falar nisso… Será que o Espiritismo, de verdade, já “entrou” em nós de forma tal que nos confira autoridade para avaliar os demais companheiros como bons ou maus espíritas? Há que se ter a humildade de admitir que todos estamos engatinhando em relação à transformação moral que nos fará o verdadeiro espírita que ainda não somos. Só assim trocaremos o dedo em riste por mãos unidas no mesmo esforço.
Um eficaz antídoto contra os atritos é promover a avaliação periódica das atividades do grupo. Mas avaliar não é colocar os companheiros no paredão. Avaliar é reunir todos os trabalhadores sistematicamente, num clima familiar, onde todos são ouvidos de forma democrática e imparcial; é levar a equipe a se debruçar sobre o que está sendo feito, discutir sobre as dificuldades e possibilidades, mantendo, aperfeiçoando ou corrigindo a rota onde for necessário.
Mas é também urgente repensar as decisões de cima pra baixo. Não raro, a diretoria decide e os demais trabalhadores executam, sem que de alguma forma tenham sido ouvidos enquanto elementos fundamentais para a execução das tarefas. Questionar nem pensar, sob pena de serem incluídos imediatamente no tratamento de desobsessão diante da afirmativa paternalista que “o nosso irmão está precisando muito de preces…” esta é a pena impiedosa de descredibilização “caridosamente” imputada àqueles que ousam “subverter” a ordem vigente.
E diante disto a gente se pergunta: Quando é que nós espíritas vamos conseguir estabelecer a diferença entre hierarquia e autoritarismo? Quando é que vamos parar de medir o valor dos companheiros pelos cargos que ocupam ou pelos títulos que ostentam? Quando é que vamos parar, enquanto dirigentes, de usar os trabalhadores enquanto mão de obra passiva para projetos que não são de todos, mas de alguns? Quando é que vamos parar de tomar questionamentos legítimos como ofensas pessoais e influência de obsessores? Já passou da hora de abandonar tais heranças reacionárias de existências passadas e avançar para a postura simples, respeitosa e justa que minimamente se espera de uma liderança espírita.
A saída é um diálogo constante, fraterno e o mais transparente possível, recorrendo a uma conversa amorosa, não só nas reuniões regulares de avaliação, que é o momento certo de refletir sobre o que não anda bem, mas buscando este diálogo no cotidiano da Instituição – em nível individual ou coletivo – sempre que os problemas surgirem. Omissão por medo de provocar ruptura é um equívoco. Se não criamos coragem de pegar o boi pelos chifres, intervindo junto aos conflitos e divergências quando necessário, estaremos perigosamente contribuindo para que se avolumem. Esconder os problemas não nos liberta deles, pelo contrário, faz com que ganhem força. E de repente lá estão eles, nas conversas de corredor, nos afastamentos repentinos ou nos debates acalorados em momentos impróprios, determinando de forma totalmente negativa a dinâmica das relações e, consequentemente, da Instituição.
Poeira acumulada debaixo do tapete leva a uma alergia tal que aos poucos vai tornando impossível a permanência no ambiente, ou seja, se fecharmos os olhos às dificuldades, quando os abrirmos poderemos tristemente constatar o esvaziamento da Casa, de forma literal ou pior: O desencanto, a ausência da fraternidade legítima, a presença pela “obrigatoriedade” de cumprir o compromisso e não pela alegria de estar junto, que é a base de tudo.
A responsabilidade é grande. Se não quisermos ser “cegos a guiar cegos”, precisamos compreender que conhecimento doutrinário, por si só, não habilita ninguém a estar à frente de Instituições Espíritas. É preciso também muita autocrítica e um mínimo de humildade. Quando convidados a assumir a liderança de nossos grupos, antes devemos nos perguntar se temos perfil para tal, se temos equilíbrio suficiente para atuar como mediadores, aglutinadores, pacificadores, como líderes e não chefes ou donos de coisa alguma, porque senão, ao menor estranhamento vamos ser os primeiros a pegar a nossa malinha e sair por aí atrás do utópico grupo ideal, deixando para trás companheiros divididos e desnorteados.
As chances de êxito são infinitamente maiores quando nos dispomos a exercitar esse tal amor, que não é algo tão longínquo quanto podemos supor; que começa se expressando simplesmente pela valorização dos pontos positivos dos companheiros, em detrimento dos negativos que possam ter; que se faz presente no exercício da tolerância, não porque somos bonzinhos e amamos todos os companheiros de forma igual – porque isto não acontece nesse estágio em que nos encontramos – mas porque temos consciência de que todos estamos no mesmo barco em termos de deficiências espirituais e que cada um precisa da tolerância do outro.
Se não buscarmos nutrir pelos companheiros esse amor possível, vamos continuar brincando de espírita bonzinho e, no fundo, só nos aturando, assim como qualquer profissional no seu ambiente de trabalho. Mas se existir afeto, a gente cede aqui, cede ali ou não cede, porque existem coisas que não dá para transigir, mas diz o que tem que dizer de uma forma sincera, porém amorosa, fraterna e, lembrando Jesus, vamos conversando com o nosso irmão em reservado “e se ele vos entender”, diz o mestre, “então tereis ganho o vosso irmão”.
Difícil?… Mas quem foi que disse que é fácil evoluir… e que se evolui sem conviver?!?
Pensemos nisto.
Joana Abranches – Assistente Social e Presidente da Sociedade Espírita Amor Fraterno – Vitória/ES
Fonte: Espiritualidade e Sociedade