Que devemos conservar e o que devemos mudar nas casas espíritas?
Jáder Sampaio
Um dos grandes desafios de qualquer doutrina desenvolvida em um determinado momento no tempo está em identificar o que é essencial e contínuo do que é passageiro e mutável. Outro, é saber perceber o que é próprio de uma localidade geográfica e o que é comum a todas.
Essas são importantes fontes de conflitos entre dirigentes de diferentes casas espíritas, ou de estados brasileiros ou até de confederações internacionais. O que pode ser feito de forma diferente, sem comprometer a qualidade e a coerência doutrinária e o que não poderia?
Logo na chegada do Espiritismo ao Brasil, já na primeira publicação brasileira feita em O echo d’além-túmulo, o autor, Luiz Olympio Telles de Menezes, não via diferença entre o Catolicismo e o Espiritismo. Assim que a notícia chegou à França de Desliens, secretário de Kardec, ele se sentiu obrigado a discordar elegantemente na Revue Spirite, uma vez que o Espiritismo era incompatível em diversos pontos com o Catolicismo, seja empregando a razão, a observação ou a interpretação das mensagens dos Espíritos. Eram doutrinas com pontos em comum, mas com inúmeras divergências. Com o tempo, o Espiritismo no Brasil se modificou e se aproximou mais do projeto de Allan Kardec, passou a valorizá-lo e a distinguir o pensamento espírita do pensamento católico. O Brasil deixou de ser um país oficialmente católico e o Estado Brasileiro tornou-se laico.
Do ponto de vista das organizações, Rivail conhecia bem as instituições que formavam a Universidade Imperial da França, que englobavam desde a educação de crianças na primeira infância até o ensino superior. Na época havia institutos e academias de pesquisa, a bem dizer associações de cientistas interessados em alguma área de conhecimento, que se reuniam em períodos pré-fixados para compartilhar descobertas, debater pontos diversos anunciar publicações, entre outros objetivos. Bem possivelmente esse era o tipo de instituição que serviu de base para a fundação da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas por Allan Kardec. No Brasil da mesma época, havia apenas faculdades isoladas, que vieram sendo fundadas desde a vinda da família real de Portugal ao Brasil. As elites enviavam anteriormente seus filhos para estudar na metrópole portuguesa e o ensino continuava ligado à Igreja Católica, de forma geral, que se tornou a grande referência de organização no Brasil.
Na história do movimento espírita brasileiro, portanto, houve grande influência da Igreja no Espiritismo, exceção da homeopatia e das ligações de muitos espíritas com a Maçonaria, entre outros pontos diversos. Quanto mais se estudava os livros de Kardec, maior era a influência da filosofia, a percepção das diferenças, o desejo de se construir uma ciência espírita e de se mostrar relevante para a sociedade brasileira, o que foi um dos fatores que deu origem à complexa rede de ações sociais feita pelos espíritas.
Um centro espírita no início do século 20 se assemelhava a uma igreja, obviamente sem a quantidade imensa de ritos e sem uma hierarquia similar de controle dos centros espíritas. Houve um esforço associativo e de aproximação das práticas nas casas espíritas que culminou nos esforços da chamada unificação, muito defendida por Bezerra de Menezes e pela Federação Espírita Brasileira.
As Universidades começaram a se formar nas primeiras décadas do século 20, e as instituições de fomento à pesquisa se desenvolveram a partir dos anos 1950 na sociedade brasileira, ganhando recursos substantivos de estado para a realização da pesquisa a partir da década de 1970. Foi nessa época que se formou o eixo ensino, pesquisa e extensão, como diretrizes básicas nas universidades, que se tornaram em algo maior que instituições de ensino, formada exclusivamente por professores, mas também em espaços de produção do conhecimento, contando com pesquisadores e técnicos para a aplicação do conhecimento na sociedade, contando com as atividades de extensão.
Essa nova mentalidade organizacional tem chegado ao movimento espírita brasileiro, que mais que ensinar a doutrina de Kardec, tem se envolvido aos poucos na interlocução entre conhecimento acadêmico e conhecimento espírita, vem acompanhando as mudanças na universidade, tem se preocupado com a construção do conhecimento espírita, com a reflexão das inúmeras práticas (mediúnica, de ação social, de saúde, entre outras) frente ao avanço das ciências. A complexidade das áreas de conhecimento e os anos de formação necessários para se entender os temas, têm incentivado a criação de organizações espíritas dedicadas a uma área determinada do conhecimento, como direito, educação, psicologia, medicina, entre outras.
Graças à cultura espírita de estudo e reflexão com os instrumentos da razão e das ciências, muitos espíritas têm assumido cargos em Universidades, seja de professores ou pesquisadores. Ao desenvolverem suas habilidades de produção de conhecimento, sentem-se interessados em aplicar essas competências no avanço da doutrina. É claro que há muitas pessoas despreparadas que ficam nos limites inferiores das analogias, apenas, às vezes com compreensões equivocadas das novas construções teóricas por lhes faltar base na respectiva área de conhecimento. Estes, sem querer, acabam contribuindo para o descrédito da doutrina junto aos que efetivamente conhecem as teorias e aplicações que eles julgam dominar.
As mudanças sociais, que não necessariamente podem ser vistas como progressos, e que às vezes são nada mais que experiências sociais, são talvez as que mais demandam o cuidado e a reflexão das lideranças espíritas. O que eram apenas costumes de época e o que são costumes da época atual, fadados à mudança futura? O que devemos aceitar, o que devemos incorporar, o que devemos mudar nos centros espíritas? O que é uma consequência do materialismo na sociedade, de uma mentalidade individualista e de acumulação de bens, e o que veio para tornar nossas vidas mais confortáveis e que já atingiu um enorme segmento da sociedade brasileira, alterando algumas características das casas espíritas? Que novidades são incoerentes com a ética espírita, e que novidades são novos recursos para o estudo, a divulgação e a aplicação do espiritismo na sociedade moderna? Essas são algumas questões que devemos enfrentar com serenidade e ouvir a experiência dos colegas dirigentes com atenção, antes que se tornem fontes de conflitos nos centros espíritas.
Extraído de Espiritualidade e Sociedade
Jáder Sampaio é psicólogo, doutor em administração, tradutor e escritor espírita, pesquisador e membro da Liga de Pesquisadores do Espiritismo Fonte: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2023/01/DE193.pdf