Dependência Química Na Família

1 –  A formação do sintoma

Podemos definir sintoma como um fenômeno ligado a alguma condição patogênica que sinaliza a disfuncionalidade de um organismo ou sistema. O sintoma se apresenta na família por meio do sofrimento de pelo menos um de seus membros, o qual é chamado de “paciente identificado” (PI). O processo patológico do PI tende a fazer com que a maioria das atenções dos membros da família se voltem para ele. E, dependendo da gravidade do sintoma, ou da função que o paciente identificado tem na família, sua patologia passa a ser o tema do sistema familiar, ocupando sua principal área de preocupação. Os membros da família passam a creditar à situação patogênica vivida pelo PI todas as suas angústias e preocupações. Neste sentido, o sintoma, apesar de seu aspecto desagradável, se torna funcional para o todo, trazendo uma ambivalência. A família quer se livrar do sintoma, contudo se “utiliza” dele. Este impasse causa mais estresse ao sistema, reforçando o padrão relacional. Assim, quando afirmamos que a dependência química é um sintoma do sistema familiar, apontamos para o fato de que, apesar de a dependência ser uma patologia que merece tratamento especializado, sua presença também sinaliza uma disfunção neste sistema.  Esta disfunção, se não for tratada, será terreno fértil para o desenvolvimento de outros sintomas, causando o agravamento do padrão relacional e, consequentemente, da condição patogênica. Papp (1992) afirma que o sintoma está a serviço da função reguladora de forças que circulam dentro da família. Este processo possibilitaria sua evolução, permitindo que este possa cumprir suas etapas de desenvolvimento. Para a autora a função do sintoma na família e o modo como as pessoas reagem a ele seria o principal interesse dos terapeutas de família.

Na teoria sistêmica, um sintoma é visto como consequência de uma condição estressante vivida pelo sistema. Ele pode surgir como resposta a um desequilíbrio previsível, ou não, tendo como principal função a volta do equilíbrio, ou seja, da homeostase familiar. Segundo Carter e McGoldrick (1995) o sintoma estaria denunciando uma dificuldade da família em avançar nas etapas do ciclo vital familiar.  Assim, as famílias podem reagir de diversas formas diante de algum estresse. Quando reagem à situação sintomática dando foco ao problema, tendem a buscar uma forma diferente de se relacionar, provocando mudanças na estrutura familiar, num processo de retroalimentação positiva. Este fato parece ocasionar uma “oxigenação” no sistema familiar, comprometendo todos os membros no processo de transformação, já que não só a pessoa que apresenta o sintoma foi tratada como também a estrutura sintomática. Esta postura normalmente determina o desaparecimento do sintoma e, como consequência, a volta da funcionalidade familiar. Muitas vezes isto ocorre sem que tenha sido procurada uma ajuda externa ao sistema.  Podemos afirmar que o grau de estresse vivido no sistema é o fator determinante que leva a família a buscar ajuda. Se este se torna intolerável, significa que aquele padrão relacional induzido pelo sintoma ao invés de equilibrar o sistema, passa a desequilibrá-lo causando também estresse e desequilíbrio nos membros da família (Papp, 1992).   Alguns membros são mais atingidos, outros menos, e costumam manifestar esta influência de diversas formas. Normalmente os que apresentam prejuízos mais visíveis costumam ser mais solicitados a se engajarem de forma mais intensa no processo de mudança. Entretanto, se isto não acontecer, a família tenderá a se organizar de forma cada vez mais disfuncional em torno do estresse, perpetuando-o. De modo geral, a saúde do sistema familiar está relacionada com o comprometimento dos membros da família no processo de mudança, o que Carter e McGoldrick (1995) chamariam de avançar nas etapas do ciclo vital. A falta deste engajamento, além de sinalizar a intensidade da gravidade do sintoma, aponta para a intensidade do desequilíbrio e para a falta de flexibilidade do sistema em lidar com as desestabilidades. Contando com o fato de os sintomas serem previsíveis em algumas situações – tais como depressão após morte de parente próximo ou manifestações psicossomáticas após situações traumáticas –, em algumas famílias estes eventos deixam de ser passageiros e se mantém através das gerações construindo padrões de comportamento.  Isto acontece quando as famílias absorvem o sintoma, acomodando sua estrutura a ele de forma a minimizar seus efeitos perturbadores dentro do sistema familiar. Esta situação impede um “estranhamento” do sofrimento, afastando a motivação para a mudança. Essa espécie de organização sistêmica facilita o agravamento do sintoma inicial além de provocar o surgimento de sintomas cada vez mais perturbadores e mais graves. Por exemplo, poderíamos afirmar que o fato de a estrutura familiar estar organizada na forma mãe superfuncional e pai subfuncional, fato este reforçado pelo sintoma de alcoolismo, esta poderia estar em equilíbrio até o momento em que a mãe não conseguiria mais dar conta de um filho adolescente abusador de drogas e precisaria da atuação do pai para tal fim. Se o pai não conseguir assumir seu papel devido ao seu intenso grau de dependência, o equilíbrio do sistema entraria em colapso. Necessitaria, portanto, de ajuda externa para auxiliá-lo a voltar ao seu equilíbrio por intermédio de outro tipo de interação relacional. Neste caso, o subsistema parental deveria ser reforçado em sua função paterna. Isto só seria possível com o tratamento da dependência do pai.  Contudo o sistema também pode se organizar de forma a que outra pessoa ocupe a função parental – avô, avó, tio ou até um outro filho. Caso isto aconteça, o sistema teria encontrado uma solução no sentido de se acomodar ao sintoma (dependência química) conservando o pai em seu alcoolismo, perpetuando assim este sintoma no sistema.  Além disso, o processo de acomodação parece dificultar a percepção da gravidade do quadro, sendo muito comum nesse tipo de família a busca de ajuda somente em momentos de extrema crise. Este fato compromete seriamente o prognóstico, pois qualquer intervenção se deparará com um intenso “engessamento” da estrutura familiar em torno do sintoma.

Por esta razão, alguns autores acreditam que a manutenção de determinadas patologias precisaria de uma estrutura familiar específica que as sustentaria. Normalmente, essas estruturas familiares estão relacionadas com as patologias mais graves, de caráter progressivo e crônico.

“A natureza crônica da drogadição pode ser explicada pelo sistema familiar. O ciclo adictivo forma um padrão familiar que envolve um complexo sistema homeostático de mecanismos de retroalimentação entrelaçados que servem para manter a adicção e, em consequência, a estabilidade geral da família.” (Stanton e Todd, 1999, p.  42)

2 – A função da dependência no sistema familiar

O sintoma, enquanto padrão relacional, tem o papel tanto de denunciar alguma disfunção da forma como a família está estruturada, quanto de proteger e manter o funcionamento da estrutura familiar. Entender a função que o sintoma tem em uma família é elucidar importantes pistas que levam a uma adequada compreensão dos fatores mantenedores dos padrões interacionais presentes em um sistema adictivo. É preciso também esclarecer que entender a função do sintoma é diferente de inferir uma causalidade à sua existência. Esta função pode acontecer após o seu surgimento ou ao longo disto, não havendo, necessariamente, nenhuma implicação etiológica (Dare, 1996).  A função do sintoma está ligada à organização e à sustentação da estrutura no sistema. O grau de cronicidade de um sintoma no sistema aponta para a importância de sua função nas transações familiares. E, quanto mais importante é a função do sintoma na família, mais difícil será a mudança dos padrões relacionais que o sustentam (Papp, 1992). A dependência de drogas é um dos sintomas mais graves dentro de um sistema familiar. Por ter aspecto progressivo e “adaptativo”, seu desenvolvimento reforça os padrões relacionais que se iniciam em sua origem.

Diversos autores estudam o papel da droga e da dependência no sistema familiar. Estes estudos têm como principal objetivo compreender as especificidades deste sistema, a fim de desenvolver um referencial teórico que possibilite intervenções eficazes no sistema para a retomada de seu desenvolvimento.    A seguir, discutiremos três funções básicas que a dependência química, enquanto um sintoma, pode ocupar em um sistema familiar.

2.1 – Manutenção da homeostase familiar

Stanton (1999) afirma que, apesar do sofrimento que a vivência da drogadição causa ao adicto e a seus familiares, existe uma estranha estabilidade que subjaz às instabilidades vividas pelo dependente e sua família. “Se trata de fenômenos estáveis em sua previsibilidade, sua recorrência e na função que cumprem para as pessoas envolvidas” (p. 25).  A família estaria organizada em torno do fenômeno da dependência, e, apesar do intenso sofrimento experimentado a cada dia, as pessoas teriam aprendido a viver daquela forma, sentindo-se extremamente ameaçadas diante da possibilidade de provocarem alguma modificação no padrão relacional. O sintoma da dependência estaria no pilar do equilíbrio da estrutura familiar, mantendo sua homeostase.  Manter a homeostase é, de uma certa forma, dificultar qualquer mudança na estrutura do sistema familiar. Papp (1992) afirma que, quando a família pede ajuda para o sintoma, sua expectativa é de mudá-lo, sem contudo mexer na estrutura do sistema. Isto porque a família, em sua reação ao sintoma, aprendeu a “isolá-lo”, vendo-o como entidade à parte. Este isolamento acontece no sentido de conviver de modo a perder o menos possível com ele. E é justamente esta dinâmica que possibilita a adaptação ao mesmo.  No caso da dependência química, uma esposa, por exemplo, poderia reagir com muita dificuldade se lhe fosse recomendado que ela superfuncionasse menos a fim de que o marido pudesse funcionar mais. Na prática isto significaria que a esposa deveria deixar de chamar para si certas atribuições que seriam de seu marido, para que este pudesse assumir sua função. É provável que, apesar de estar esgotada por “carregar a família nas costas”, esta esposa teria muito medo de deixar seu marido alcoólatra gerir novamente sua conta bancária ou lidar com seu filho.  O caso acima ilustra claramente o quanto o alcoolismo do marido está mantendo uma estrutura familiar, e que o fato de ele deixar de beber trará profundas mudanças na interação desta família. Ao mesmo tempo, o fato de o filho ter abusado de substâncias coloca a família em um dilema: muda-se a estrutura para eliminar o sintoma ou mantém-se a estrutura evitando mudanças mais profundas.  Este dilema estará no cerne de qualquer atitude de enfrentamento que esta família vier a adotar e será ao mesmo tempo motivador para a mudança e mantenedor do status quo.

2.2 – Manutenção dos papéis familiares

Na formação do sistema familiar, seus membros se organizam em subsistemas que determinam suas funções e capacitações dentro da família. Este é um processo adaptativo que ocorre no decorrer do tempo.  A dependência química é um sintoma que causa uma debilidade crônica ao usuário, o que faz com que as pessoas à sua volta assumam as situações que ele próprio não consegue assumir. Em nível estrutural isto significa que as capacitações e posicionamentos na família adictiva se organizam de forma a possibilitar que os outros membros dos subsistemas exerçam algumas funções pelo dependente, trazendo problemas com relação à demarcação de fronteiras e posicionamentos hierárquicos. Este fato acontece em decorrência do processo de adaptação dos membros da família à dependência. Assim como o usuário percorre diversas fases em seu processo de dependência (Johnson, 1992), a família também sofre um processo de adaptação ao comportamento sintomático. Carter e McGoldrick, (1995) citam uma sequência adaptativa da família no processo de dependência que, apesar de ser baseada no subsistema conjugal, pode ser generalizada para todo o sistema familiar. A referida descrição elucida o processo de assunção de papéis superfuncionais, além de descrever os momentos onde as fronteiras dos subsistemas são quebradas para a sobrevivência do sistema:

1o momento – Diante das primeiras experiências de perda de controle com o uso de substância química, ocorre uma interação tensa baseada no silêncio e na não-abordagem clara das dificuldades conjugais. Há também uma minimização dos problemas relativos ou não ao hábito de usar a substância, tanto por parte do cônjuge que não a usa, quanto por parte do cônjuge que dela faz uso.

2o momento – Devido ao agravamento dos problemas com relação ao hábito de usar, há um crescente isolamento social da família, que passa a se organizar em torno das necessidades do abusador, com o objetivo de não o expor e de não expor o sistema. A parceria do subsistema conjugal é abalada, e intensificam-se as tentativas de controle do cônjuge não abusador sobre o abusador. O cônjuge não abusador intensifica as manobras para manter a família em funcionamento, começando a funcionar pelo cônjuge abusador. Os filhos adquirem papéis disfuncionais a fim de equilibrar o sistema.

3o momento – A família, diante do fracasso em controlar o processo de dependência, reage a este manifestando raiva e rejeição. Alguns membros podem iniciar o uso de substâncias psicoativas, enquanto o cônjuge não abusador experimenta um grande sentimento de incapacidade com relação a si próprio, sentindo-se culpado por não ter conseguido controlar a situação. O mesmo sentimento é experimentado pelo abusador.

4o momento – O cônjuge não abusador passa a assumir a maior parte das responsabilidades do abusador (tanto as tarefas funcionais como paternas). O abusador passa a ser considerado uma pessoa incapaz de assumir suas tarefas, não sendo mais considerado como um adulto responsável. A família sente raiva e pena do abusador. O cônjuge não abusador se torna cada vez mais confiante em sua capacidade de administrar a família, empenhando-se junto com os demais membros para possibilitar uma estrutura familiar que minimize cada vez mais os efeitos que a dependência possa trazer ao sistema. O abusador tende a ficar isolado com a sua adição, colaborando para esse novo ajuste familiar. Havendo ou não separação desse casal, se o abusador ficar sóbrio, ao tentar restabelecer seu papel na família encontrará muita dificuldade em organizar sua vida e em assumir os novos papéis exigidos pela sobriedade.

Podemos observar portanto, que os papéis familiares se estruturam em torno de uma escala que vai do superfuncional ao subfuncional, estando o dependente químico no extremo subfuncional da escala. Como esses dois papéis são a tônica da dinâmica destas famílias, não falta alguém que assuma os extremos da escala. Podemos afirmar que este fato é um dos principais motivadores da cristalização da estrutura familiar.   As pessoas participantes deste tipo de sistema sentem que, se deixassem seus papéis “vagos”, causariam um desarranjo fatal às demais pessoas e à família como um todo. Vale ressaltar que o papel mais valorizado neste tipo de sistema é o de “super-responsável”. Ele é vivido por qualquer membro do sistema que ocupe a função de excesso de responsabilidades na família. Esta é uma função muito conhecida na literatura especializada no assunto e recebe o nome de codependência (Beattie, 1992). O codependente é aquele que aprende desde muito cedo a ser valorizado a partir de sua função de cuidador ou de superfuncional no sistema. Apesar de a literatura apontar para sua relação diádica com o dependente, na visão sistêmica podemos chamar de codependente todo o indivíduo que funciona de forma a reforçar a dependência no sistema familiar.  Sendo assim, a codependência pode se manifestar de diversas formas em cada membro do sistema.  Podemos afirmar que a dinâmica da codependência ajuda na cristalização dos papéis mantenedores da dinâmica adictiva e se retroalimenta com a adicção ativa do dependente. Quanto mais tempo esta estrutura estiver sustentada no sistema, maior probabilidade haverá de existirem pessoas subfuncionando, causando a perpetuação deste tipo de sintoma na família.  Assim, os papéis existentes em um sistema aditivo se retroalimentam em suas funções, perpetuando as capacitações dos membros que os possuem. Muitas vezes, a mudança do papel de algum membro da família causa o desequilíbrio no sistema, resultando numa manifestação grupal de cobrança de lealdade.

Quando surgem situações de desequilíbrio do sistema, é comum que os membros da família achem que os outros membros não estão cumprindo as suas obrigações. Então aparecem reivindicações de lealdade familiar e manobras que induzem culpa” (Minuchin, 1990, p. 58).

Por esta razão, o tratamento familiar é de extrema importância na abordagem da dependência química, pois se não estiverem todos de acordo com relação à reestruturação do sistema, provavelmente este não acontecerá. “Quando um membro da família se recupera, se torna necessária uma readaptação para incluí-lo em sua antiga posição ou ajudá-lo a assumir uma nova posição no sistema.” (Minuchin, 1980, p. 58)

2.3 – A dependência e os estágios desenvolvimentais

O processo de dependência pode estar intensamente vinculado às dificuldades na ultrapassagem de fases no ciclo vital familiar ou ser uma resposta a algum estresse vivido em determinada fase (Carter e McGoldrick, 1995).  Cada fase que o sistema ultrapassa em seu ciclo vital possibilita a vivência de desafios que podem se tornar impasses desenvolvimentais. Estes impasses podem acabar por facilitar o desencadeamento de um processo de dependência ativa. Este fato ocorre por conta das desestabilidades que o sistema vivencia na passagem de suas etapas.  Como a dependência se desenvolve de forma progressiva e insidiosa, sua evolução pode estar intimamente ligada a momentos específicos que a família vivencia. Por exemplo, uma família pode ter sua estrutura pautada em torno do papel de “cuidadora” da mãe e da filha e dos papéis de “necessitados” dos outros membros. O momento do casamento da filha pode causar estresse ao sistema, na medida em que seu papel era extremamente importante para a manutenção do equilíbrio. Talvez o pai venha a intensificar sua relação com a bebida, ou a mãe venha adoecer ou passar a tomar medicamentos para dormir, tensa por não poder mais contar com a filha. A filha pode casar, mas não ter saído de fato da casa dos pais e seu marido, para chamar-lhe a atenção, possa começar a abusar do álcool.  Ao mesmo tempo, este marido, para minimizar o impacto da saída do papel de filho para o de marido, pode continuar a ter o mesmo comportamento que tinha na sua família de origem, em que a mãe cuidava dele após todas as suas bebedeiras de adolescente.  Este quadro demonstra o quanto o aumento da ingesta do álcool pode estar vinculado a entraves na transição evolutiva do ciclo vital familiar. Como afirma Dare (1997) “…embora os sintomas tragam sérios prejuízos e desvantagens para a vida da pessoa, eles também têm uma função, por exemplo, a de modular as demandas de mudança durante as transições do ciclo de vida” (p. 36). Para o autor, o sintoma também pode ter a função de fixar o indivíduo no estágio do ciclo vital em que ele tenha começado. Dare (1997) observou que em seu grupo terapêutico de adultos dependentes de opiáceos, os pacientes se comportavam como pré-adolescentes “presos a um estilo, um padrão de vida, que existia na época em que eles usaram a droga pela primeira vez” (p.36). Situação que também é observada por Krestan e Bepko (1995) quando pontuam que o alcoolismo pode ter a função de interromper tarefas desenvolvimentais.  Este fato faz com que o processo evolutivo do sistema familiar fique intensamente comprometido, refletindo-se no desenvolvimento de cada membro da família, proporcionando estresse, surgimento e intensificação de sintomas. Krestan e Bepko (1995) afirmam que o momento do estágio de vida do indivíduo correlacionado com o momento do ciclo vital familiar formam um contexto em que a dependência tanto pode ser a causa quanto o efeito da disfunção.     Quanto a este fato, o início do uso de substâncias psicoativas e sua duração ao longo do ciclo vital têm importância fundamental para demarcar o comprometimento da dinâmica familiar. Quanto mais cedo o hábito é introduzido na família, mais mecanismos adaptativos terão sido desenvolvidos para lidar com o sintoma e mais dificuldades a família terá tido em vivenciar suas etapas evolutivas (Krestan e Bepko, 1995). Este fato também é observado com relação ao tempo que a família leva para pedir ajuda quanto ao hábito de se drogar.

Depois de vários anos de alcoolismo crônico, a disfunção normalmente é muito grave, ao passo que a intervenção e o tratamento logo no início sugerem um grau menos intenso de prejuízo, assim como um melhor prognóstico para o futuro ajustamento familiar. (p. 417)

Krestan e Bepko (1995) desenvolveram uma interessante correlação entre as principais tarefas desenvolvimentais no ciclo vital familiar e o papel da dependência em tais estágios. Elas descrevem a correlação entre as principais etapas do ciclo vital familiar e o desenvolvimento da adição no sistema. Segundo as autoras, o maior desafio do jovem adulto solteiro, que está se preparando para formar sua família, consiste em conseguir se diferenciar o suficiente de sua família de origem a ponto de se vincular ao seu parceiro num verdadeiro investimento afetivo. Se o seu crescimento se deu em uma família com problemas de abuso de substâncias, esse processo estará comprometido devido às dificuldades de fronteiras nos subsistemas. Além disto, o investimento na própria sobrevivência é tão alto e intenso que costuma causar no jovem adulto solteiro, comportamentos reativos à dinâmica familiar disfuncional.  Para as autoras, no sistema familiar alcoolista, tendem a predominar três caminhos no esforço da diferenciação: o jovem adulto pode desenvolver alcoolismo, repetindo o padrão familiar parental; o indivíduo pode assumir o papel de superfuncional e se unir a um outro adicto, repetindo novamente o padrão familiar, ou pode “romper emocionalmente” com a família de origem, dela se afastando. Esses três caminhos dão início ao processo de distanciamento da família de origem, porém não configuram a diferenciação.  Consideramos em nosso trabalho, uma quarta alternativa construtiva, que seria a aceitação e a compreensão do padrão familiar saindo dos extremos – disfuncional e superfuncional – e procurando um equilíbrio que satisfaça seu padrão relacional. Este é um caminho trabalhoso e difícil, porém compensador.

Estes desafios estão presentes também na dinâmica do jovem casal. Uma vez que a escolha do cônjuge está comprometida com os padrões relacionais vividos na família de origem, o desafio do jovem casal também se resume em criar sua família diferenciada das famílias de origem das quais vieram. O abuso de substâncias químicas nesta fase, portanto, sinaliza profundas dificuldades de diferenciação com relação à família de origem.  Krestan e Bepko (1995) afirmam que este casal é marcado por intensos conflitos de disputa de poder, competitividade, graus altos de dependência afetiva de um ou ambos os cônjuges e profundo desequilíbrio na complementariedade de papéis, com um superfuncionando pelo outro. A autora ainda aponta que o uso de substâncias pode ser uma forma de externar as divergências de crenças do jovem casal, perpetuando essa forma de lidar com as diferenças.   A vinda dos filhos ocasiona mudanças importantes no casal e no restante da família ampliada e, geralmente, a procura de ajuda nessa fase pode estar ligada ao alcoolismo paterno (Krestan e Bepko, 1995). Se, neste momento o abuso se intensifica, estará denunciando dificuldades no exercício da nova função, além de significar também uma reação ao isolamento criado pela dedicação à nova função parental em detrimento da conjugal.  Com os filhos atingindo a adolescência, os conflitos familiares ficam mais aparentes. Isto porque a adolescência coloca em “xeque” a organização hierárquica do sistema.  Caso existam dificuldades estruturais no subsistema parental, elas podem se refletir na intensificação da relação com a substância química de algum dos pais e no início do uso de substâncias por parte de algum dos filhos.  Esta é também a fase de início da relação de uso por parte dos adolescentes. E, quanto mais cedo esse uso for iniciado, mais possibilidade terá de ser cronicamente incluído na dinâmica familiar (Vaillant, 1996). Por conta disso, nesta fase os pais podem intensificar a superproteção com relação aos filhos, assumindo suas responsabilidades, como cobrir alguma perda que o filho tenha consequente do uso dos químicos, como pagar dívidas contraídas pelo uso de drogas. Este hábito tende a ser o combustível que ajuda na evolução de uma relação disfuncional com a substância (como visto anteriormente no capítulo 1 através do modelo de Johnson). A fase seguinte do ciclo vital familiar marca um grande movimento de entrada e saída no sistema. São os filhos saindo de casa, noras e genros entrando na família, a morte dos pais idosos e o nascimento dos netos. O abuso de substâncias acontece nesta fase para mascarar questões do casal, que agora se encontra muitas vezes vivendo esta condição depois de anos investindo na função de pais.   Este fato pode trazer também o comportamento dependente do cônjuge em foco, que antes estava disfarçado nas diversas tarefas que uma família demanda. Esta é normalmente a fase de busca de ajuda por parte da família, mas costuma também ser a fase de maior gravidade da dependência.  Na velhice, a dependência pode se intensificar por duas razões principais. A primeira delas seria uma reação às perdas dos papéis vivenciadas nesta fase. Caso o idoso viva uma progressiva situação de isolamento, o abuso de substâncias pode vir ocupar esta carência, causando mais isolamento, e agravando, assim, o problema que o provocou.  A outra razão seria vivenciada por idosos que iniciam o abuso por volta dos 65 anos como reação a algum momento de estresse circunstancial. Estes casos costumam ter melhor prognóstico, respondendo bem ao engajamento em atividades que os ensinem a lidar com as condições estressantes.  Desta forma, para uma abordagem eficaz da dependência é importante observar que lugar este sintoma está ocupando em cada fase do ciclo vital, pois este pode ser a principal resistência apresentada pelo sistema para se desfazer deste sintoma.  Este fato é observado por diversos autores, quando sinalizam para o grau de tolerância do sistema às instabilidades e prejuízos consequentes da drogadicção. O mecanismo de manutenção do sintoma no sistema se torna mais forte do que a disponibilidade de mudança dos padrões transacionais. Este fato nos aponta para a existência de padrões típicos de interação facilitadora de comportamento adictivo.

3 – Características do Sistema Familiar Adictivo

Como explicitado anteriormente, a condição para um sistema deixar de utilizar um sintoma em seu funcionamento seria fazer uma mudança estrutural em sua organização. Isto pressupõe uma série de renúncias no sentido de uma reorganização de todos os membros da família com relação à delimitação das fronteiras nos subsistemas, às mudanças hierárquicas, ao estabelecimento de parcerias mais funcionais, às destriangulações, etc. Quando o sistema não consegue se rearrumar de forma a funcionar sem o sintoma, este tende a se moldar ao sistema e o sistema a ele, dificultando sua eliminação. A acomodação do sintoma à família representa uma crescente tolerância às suas conseqüências.  Este fato é particularmente verdadeiro no que diz respeito à dependência química. Concordamos com diversos autores quando apontam o alto grau de tolerância que o sistema familiar adictivo manifesta diante das instabilidades e prejuízos consequentes da drogadicção. Situações por vezes caóticas, como perda de controle, falta de limites e ameaça à vida, são com o tempo vividas, tanto pelo dependente como pelos demais membros da família, com intenso sofrimento, mas com nítida falta de estranheza: “Isso é assim mesmo…”, “Sempre foi assim…”, “Não tem mais jeito…”, “Já fizemos de tudo…”, “Puxou ao pai…”. Esta tolerância, muitas vezes motivada pela necessidade de proteção à família e de autodefesa, acaba por se tornar um estilo de vida para aqueles membros.  Podemos afirmar que esta realidade é produto de uma série de situações, acontecimentos e rearranjos familiares vividos por determinados sistemas. As situações estressantes pelas quais toda a família passa, somadas a determinados entraves do processo evolutivo, solicitam deste sistema uma resposta que vá ao encontro da sua necessidade de estabilização e sobrevivência. Este fato acaba por resultar em uma teia de padrões transacionais facilitadores da manutenção do comportamento adictivo.

A presença de tais padrões traria a possibilidade de observamos determinadas características recorrentes nestes sistemas. Podemos afirmar que existem alguns temas e padrões relacionais típicos que marcariam estas interações. Assim, vamos descrevê-los a partir de três perspectivas1. Na primeira, destacaremos os aspectos estruturais da organização familiar, em especial a existência de triangulações disfuncionais, de dificuldades nas fronteiras e na hierarquia presentes no sistema. Na segunda, abordaremos o sistema familiar em relação ao seu desenvolvimento no decorrer do tempo priorizando as dificuldades na diferenciação de seus membros. E na terceira, enfocaremos os padrões de comunicação típicos dos sistemas aditivos.

3.1 –  A estrutura familiar adictiva

A estrutura familiar adictiva costuma se organizar na forma de triângulos rígidos, em que o dependente está presente em uma dupla rígida, vivendo uma relação simbiótica e conflituosa com o outro membro com quem faz o par. O membro outsider, localizado rigidamente fora da dupla, triangula com outros membros da família de forma intensa.  Este fato foi observado por Stanton (1999) que, tendo como referência estudos realizados por ele e seus contemporâneos, afirma existir nas famílias adictivas uma estrutura típica, baseada no triângulo básico – pai, mãe e filho dependente. Nesta triangulação a mãe assume uma posição de extremo apego, superproteção e permissividade em sua relação com o filho dependente. No caso masculino, o filho tende a opor-se à sua mãe apresentando comportamento rebelde, reagindo à falta de espaço e ao excesso de intromissão.  Já as mulheres, costumam competir com a mãe e rejeitar o pai, vendo-o como fraco e não confiável. Em ambos os casos, a mãe se sente bastante ressentida, já que, com frequência, esses filhos tinham tido um comportamento exemplar na infância, sendo muitas vezes os seus preferidos. O pai, na outra ponta do triângulo, se encontra como outsider, ausente, por vezes abusando de álcool e apresentando um grande distanciamento afetivo com relação ao filho dependente, em posição ora excessivamente cobradora, ora distante e resignada. Contudo, esse pai é facilmente “controlado” por sua esposa, que se torna o centro do poder e do afeto da família. Os irmãos não dependentes tendem a ter um bom relacionamento com o pai, contrabalançando assim, o sistema. Havendo a intensa distância do pai e a excessiva proximidade da mãe com relação ao filho dependente, os pais costumam discordar entre si da forma como cada um deles trata o filho, atribuindo-se mutuamente a culpa por seu comportamento disfuncional. A cada situação de perda de controle, como mentiras, falta de respeito pelos limites da casa, agressividade, chantagem para pagamento de dívidas contraídas pelo uso da droga, ou promessas de interrupção do uso não cumpridas, seguem-se acusações recíprocas, em que creditam a causa da situação disfuncional à atitude restritiva de um ou à permissividade do outro.

1 Vale lembrar que esta é uma separação puramente didática, na medida em que os fenômenos só podem ser entendidos pela interação destas três perspectivas.

Contudo, não há apenas uma única estrutura encontrada nas famílias adictivas. Apesar de a grande maioria delas se organizar com as mães mais próximas e os pais ausentes, Stanton (1999) em seu estudo também observou que 5% de sua amostra apresentavam uma inversão do padrão anteriormente citado, na qual o pai surgia como o membro mais apegado ao dependente. Em 80% dos casos, havia um genitor apresentando problemas com abuso de álcool, e, na maioria dos casos, o pai inclinava-se a se incomodar mais com a dependência do filho do que e a mãe, que a minimizava. Observamos comportamentos parentais opostos, muitas vezes diferenças irreconciliáveis diante da mesma situação. Este fato tende desgastar o subsistema conjugal, ao mesmo tempo em que possibilita uma relação complementar no subsistema parental. Enquanto um dos pais briga com o dependente, o acusa e aponta as situações que lhe desagradam, o outro genitor (ou outro membro da dupla) minimiza, desqualifica e por vezes forma alianças de segredos com o dependente. Assim, as atitudes que causam o desentendimento do casal são as mesmas responsáveis por sustentar a relação parental, e, consequentemente, o sistema familiar (homeostase). Kalina (1999) afirma que esta é a estrutura básica responsável pelo aparecimento do adicto na família, a quem chama de “o eleito”: aquele que carrega consigo todas as vicissitudes do grupo familiar. Para o autor, esse fato demonstra o quanto a estrutura existente na família adictiva é conservadora e autoritária, cristalizando-se em torno da necessidade de interagir em função deste “eleito”, que, apesar de escravizado pela droga, muitas vezes escraviza a família com o seu comportamento dependente.  O espaço do “eleito” se cria a partir de conflitos originários na estruturação do casal, em que há uma desilusão de ambas as partes com relação aos papéis idealizados e assumidos. Para o autor, o convívio do dia-a-dia traz à tona a realidade de cada cônjuge, que frustrado e desiludido com o que constata, prefere não ver, vivendo um “palco ilusório”. Diante de tal situação o casal necessitaria de uma “cola” que mantivesse seu vínculo.  Mesmo em subsistemas uniparentais, as triangulações rígidas, sustentadas por extremo apego e conflito estão presentes. Stanton (1999) sinaliza que nesses subsistemas existe normalmente a presença de um avô ou avó triangulando, em uma relação conflituosa com o membro uniparental. Ou ainda o pai, mesmo que afastado há muito tempo da relação com o filho, costuma estar dinamizando estas triangulações. Nestes casos, a relação da mãe com o filho dependente pode ser mais simbiótica ainda, pois este pode estar sendo o seu apoio emocional devido ao abandono sofrido por ela, por parte do pai.  Além disso, Stempliuk e Bursztein (1999) também assinalam como que aos poucos a família vai ficando cativa do dependente:

“…seus desaparecimentos entram para a rotina familiar, dias sem notícia (…). Não existe mais hora para a busca e o uso da droga ou confiança possível, o usuário acorda-os de madrugada para pedir mais dinheiro, mente, inventa desculpas e, quando obtém o que pediu, some novamente deixando para trás pessoas humilhadas, e impotentes, preocupadas e com raiva. Quando retorna, enfia-se no quarto e, depois de horas e horas de sono, quem acorda é o arrependimento, as acusações, (…) a culpa, a depressão e as promessas de parada, de que foi a última vez… Infelizmente, isto dura apenas alguns dias, o tempo de voltar a vontade e a compulsão falar mais alto, e tudo recomeça novamente no seu ritual aparentemente não suscetível a argumentos da razão, compromissos morais, afetivos ou profissionais. (p. 160)

Com base no que discutimos até agora, podemos afirmar que a presença de uma interação aditiva é facilitada por um superapego caracterizado por uma relação simbiótica de um membro do subsistema parental com o filho dependente, em detrimento do outro membro. Este fica excluso, triangulando intensamente ou com a sua própria adicção, ou com o trabalho, ou com outra relação fora da dupla parental.  Todavia, é importante examinar esta dinâmica a partir dos paradigmas sistêmicos de circularidade, homeostase e retroalimentação. A partir deles entendemos que não há vítimas nem algozes e, sim, uma dinâmica interativa da qual participam determinados personagens com os seus papéis. Trata-se de uma dinâmica em que todos precisam entender seu grau de responsabilidade tanto na funcionalidade quanto na disfuncionalidade, tanto na saúde quanto na manutenção do sintoma.

“… cada um deve assumir a responsabilidade que lhe cabe – porque constitui uma luta contra os modelos autocráticos e escravizantes que caracterizam a vida familiar do adito, assim como costuma ocorrer também nas demais patologias graves. Não nos referimos com exclusividade ao autoritarismo materno ou paterno, pois este papel muitas vezes é exercido pelo “eleito”, que dessa posição escraviza a todos os demais membros do grupo familiar” (Kalina, 1999, p. 42).

Desta forma, estamos nos referindo à redistribuição do peso do sintoma, do papel do “eleito”, e da superfuncionalidade de alguns membros. Tudo isto apontará para a qualidade das fronteiras e posicionamentos hierárquicos dos membros da família dentro do sistema. Alguns problemas com relação a estes fatos devem ser apontados. Com relação às hierarquias e fronteiras dos subsistemas, encontramos nestas famílias fronteiras difusas refletindo posições hierárquicas indefinidas2.  Por exemplo, a triangulação rígida já descrita sinaliza diversos problemas. Podemos destacar que as relações simbióticas vividas nas famílias adictivas refletem e produzem dificuldades no estabelecimento das fronteiras que demarcam os subsistemas. Isto se deve ao fato de as fronteiras existentes entre os subsistemas conjugal e filial serem excessivamente permeáveis, possibilitando aos filhos e aos pais um trânsito inadequado entre eles – o que resulta no excessivo apego entre o dependente e um dos genitores.  Em decorrência, papéis que normalmente teriam de ser desempenhados pelos pais com frequência acabam ficando por conta dos filhos ou de algum deles em especial. “Esta delegação de papéis de autoridade retroalimenta uma estrutura de relações ambíguas, onde as referências dos limites, das regras e das restrições acabam sendo muito confusas, além de objeto de negociações pouco claras” (Stempliuk e Bursztein 1999, p. 161).  É comum em tais circunstâncias a existência de um subsistema conjugal unido em complementariedade, mas rachado em hierarquia. Suas intervenções, em lugar de atacarem o problema da adicção, acabam por neutralizar-se a si mesmas com relação aos seus objetivos caminhando em direções opostas e enfraquecendo a hierarquia deste subsistema. Stanton (1999) afirma que este tipo de prática é o principal foco das intervenções em uma terapia com este tipo de família. O autor observa que o comportamento adictivo perde a força na família quando se depara com uma coalizão hierárquica coerente. Esta mudança é alcançada quando, dentro do contexto familiar, as regras e normas são explicitadas de forma clara e, principalmente, quando os limites do subsistema parental estão nitidamente demarcados. Este fato acaba por ocasionar uma demarcação evidente no subsistema conjugal, forçando a quebra de duplas rígidas formadas por filho parental.  É importante observar que estas pontuações sobre a estrutura típica da família adictiva se mostram verdadeiras tanto para filhos quanto para pais dependentes. A pertinência desta afirmativa decorre da observação de que, em ambos os casos, as triangulações, baseadas nas díades rígidas, estão presentes, fazendo com que a abordagem em nível estrutural se dê de forma semelhante. Contudo, a abordagem de pessoas que já possuam seu próprio núcleo familiar, engloba mais uma variável. Este fato cria uma diferença marcante: em se tratando de adultos dependentes que já formaram suas famílias, observa-se um apego desmedido à família de origem.

2 Acreditamos que uma estrutura familiar funcional se traduz no posicionamento adequado de seus membros de acordo com suas capacitações e designações de poder, que sustentam sua hierarquia.

3. 2 – O processo desenvolvimental nas famílias adictivas.

Quando tratamos da função da dependência com relação aos impasses vividos nos estágios desenvolvimentais presentes nas famílias, apontamos para o fato de que este sintoma se presta principalmente a diminuir o impacto que as mudanças trazem a ele.  Stanton (1999) observa que o fato de a adicção geralmente se iniciar na adolescência – fase em que o indivíduo começa a fazer os primeiros movimentos significativos para fora do núcleo familiar – aponta para direções importantes. Por conta das instabilidades vividas em decorrência do processo de dependência, o padrão de superproteção vai sendo construído desde cedo, dificultando o processo de diferenciação. Este fato se refletirá mais adiante visto que as estatísticas mostram que a grande maioria dos adictos com mais de 30 anos moram com suas famílias de origem. Ou, quando não moram com elas, estabelecem contato telefônico pelo menos uma vez por dia (Stanton, 1999).

Quando isto não acontece, pessoas não preparadas assumem posicionamentos de liderança e de responsabilidades inadequadas à sua idade e ao subsistema a que pertencem.

“Desde cedo, viver com os pais ou vê-los regularmente não é por força indício de disfunção. Tais situações podem ser muito naturais, segundo o meio cultural e étnico, e um apego familiar permanente por certo não implica em drogadicção. Mais importante, porém, é a qualidade e a estrutura operativo-funcional dentro das famílias que têm filhos que abusam das drogas e qual etapa a família está em seu ciclo vital familiar”. (Stanton, 1999, p.25)

Em contrapartida, o contato com a família nuclear era intenso, mas pouco substancial para ser aproveitado terapeuticamente.O autor relata que as relações maritais costumam ser bastante conflituosas na circunstância de o adicto não encontrar o mesmo grau de permissividade vivido em sua família de origem. Isto faz com que voltar à casa paterna seja uma opção muito “tentadora”, o que acaba acontecendo com frequência.  Estes fatos levaram Stanton e seus colaboradores (1999) a realizarem um estudo a partir de 450 fitas de vídeos com atendimentos às famílias. Eles prestaram especial atenção aos padrões relacionais e à formação de coalizões dentro desses sistemas. O autor afirma que tais padrões diferem mais em grau do que em espécie em comparação com as outras famílias. Suas conclusões são especialmente importantes para este trabalho e serão expostas a seguir.  A primeira observação de Stanton diz respeito ao princípio da homeostase que Jackson havia apresentado. O autor observa que quando o adicto começa a evoluir em sua vida, conseguindo um emprego ou se envolvendo em atividades que o levem realmente para longe de sua família de origem, uma crise costumava acontecer na família: briga ou separação dos pais, doença grave em algum deles. O adicto voltava a se comportar de forma disfuncional e os problemas familiares se dissipavam.

Observamos este padrão com tanta frequência que nos resultou evidente que não só o adicto temia se separar da família, como também a família se sentia igual a respeito dele. Esta conduta nos indicou que se tratava de um “processo interdependente” donde o fracasso servia como função protetora para manter a união familiar. A família necessitava do adicto tanto ou mais que o adicto da família. Os membros pareciam agarrar-se uns aos outros para reafirmar-se, ou talvez em busca de uma certa integridade ou dignidade (1999, p. 29).

O medo da separação vivido pelo sistema pode ser observado desde a infância, no significado dos laços familiares estabelecidos (Stanton, 1999). Características já citadas, como o superapego e o distanciamento, assumem mais significado com esta observação do autor. Ele afirma que a família suporta as mais terríveis situações, como mentiras, roubos e situações de extrema vergonha, ou protege o adicto de situações externas que o confrontem, com o objetivo de assegurar sua presença entre eles. A mensagem passada pela família é “Suportamos qualquer coisa, mas não nos abandone.” (Stanton, 1999) Por sua vez, o adicto envolto em culpa e em facilitações não consegue abandonar sua família, mantendo-se disfuncional. A consequência deste fato é a complicação do processo de individuação, tanto do adicto, quanto das pessoas que estão envolvidas no processo. Podemos afirmar que a capacidade de se individualizar é uma das principais “heranças” que um sistema pode deixar para os seus membros. Ela acontece a partir de um processo de engajamento e distanciamento de pessoas e situações que se apresentam no decorrer da vida. Como anteriormente sinalizado, a separação da família de origem nunca acontece de todo, mas é necessário que ocorra em um nível adequado para que o indivíduo possa sair da “barriga da família” e nascer para o mundo (Groisman et alli, 1996).  Podemos afirmar que a dependência química seria a metáfora de nosso principal dilema evolutivo: nascemos em total dependência e temos, no decorrer da vida, de conseguir nossa progressiva independência e mantê-la. No caso da adicção, o indivíduo vive uma situação intermediária e, por isso mesmo paradoxal: a pseudoindividuação. Muitas vezes, ao primeiro olhar nos parece que o comportamento do dependente demonstra displicência e super-independência. Contudo, uma observação mais apurada nos fará perceber que, com a disfuncionalidade da adição, os adictos se tornam cada vez mais dependentes e necessitados da ajuda externa. E essa ajuda, principalmente a familiar, vem no sentido de perpetuar a condição de dependência disfuncional.  Muitos adictos, quando descritos por seus familiares, parecem ter 12 anos de idade quando na verdade têm 40. Isto acontece porque a disfuncionalidade da adicção faz com que as pessoas assumam tantas coisas para o adicto que ajudam a “torna-lo” um eterno adolescente.  Este fato também repercute nos filhos desses adictos. Como muitas vezes precisam, desde cedo, assumir posicionamento de adulto devido ao seu deslocamento para a situação parental, sofrem prejuízo em seu processo de individuação ficando “agarrados”, ou na posição de “adultos mirins” ou na de “eternos rebeldes”, e tendo dificuldade de abrir mão deste posicionamento precocemente privilegiado (em nível hierárquico).

Esse quadro denominado síndrome pseudomaturacional é caracterizado por apresentar indivíduos que, sob a fachada de grande amadurecimento e desenvolvimento intelectual, escondem a criança assustada, que muito precocemente teve que aprender a cuidar de si própria. Boa parte das terapias que envolvem o tratamento de pessoas filhas de alcoolistas tem que lidar basicamente com essa problemática (Ramos, 1999 p. 211).

A adicção, servindo de condição estabilizadora do sistema, tem na pseudoindividuação um de seus principais combustíveis mantenedores. Stanton (1999) sinaliza que o adicto se mantém incompetente aos olhos da família, mas muitas vezes assume situação de liderança com relação ao seu grupo de pares. Além disto, seu uso e seu comportamento representam para a família um desengajamento do núcleo familiar, causando muitas vezes a sensação de que o adicto é um membro distanciado, alheio ao convívio familiar. Por isso, o uso de drogas pode ser entendido também como uma tentativa de individuação que na verdade não se consolida (Stanton, 1999). Com a adicção o indivíduo não está nem dentro e nem fora da família e também não consegue assumir a sua família nuclear. Vive essa condição contraditória que não se resolve e é retroalimentada por todo o sistema familiar. Vive ainda a dificuldade de liberar a família e de a família liberá-lo.  Podemos afirmar, portanto, que o sistema familiar adictivo fica “emperrado” em determinada fase de seu ciclo vital. Esta situação pode ser ao mesmo tempo causa e consequência de um processo de dependência. Para Krestan e Bepko (1995) definir os aspectos disfuncionais do sistema adictivo é particularmente complicado se a dependência aparece naquele sistema pelo menos em três gerações, sinalizando dificuldades de individuação que atravessam a história da família. Todd e Selekman (1991) afirmam que o desenvolvimento do abuso de drogas em adolescentes por exemplo, é indicativo de dificuldades no desenvolvimento do sistema multigeracional familiar. A família adictiva costuma ter baixo nível de diferenciação, apresentando inabilidade na adaptação aos estresses causados pelas mudanças através das gerações. Isto faz com que haja um acúmulo de ansiedade nas relações familiares e uma baixa tolerância a estresses. Tal condição tende a comprometer intensamente o funcionamento familiar, facilitando relações emaranhadas ou distanciadas. Todd e Selekman (1991) observam que os adolescentes são especialmente vulneráveis ao desenvolvimento da dependência nesse tipo de estrutura familiar. Estando mais expostos que as crianças – pois começam a se engajar em muitas atividades fora da família– e, ao mesmo tempo, com pouca habilidade para suportar a pressão familiar acabam por encontrar no processo de dependência uma “saída” para a pressão vinda da família e do seu processo de amadurecimento. Com tudo isto, combinado com um padrão multigeracional de abuso de substâncias muitas vezes presente nas famílias, o adolescente terá quase todas as condições necessárias para se tornar um dependente químico. A abordagem destas famílias inclui uma profunda sondagem nos processos emocionais que circundam a dependência (Todd e Selekman ,1991). Muitos temas podem ser encontrados, mas nenhum é tão recorrente quanto a morte.  Este tema aparece sob diversos aspectos. O adicto e sua família vivem a ameaça da morte todo o tempo. O adicto está usualmente beirando a morte, ou envolvido com ela. Seus familiares por vezes se esforçam o quanto podem na tentativa de livrá-lo da morte. De fato, esta é uma patologia com alto grau de mortandade. Os adictos costumam manifestar um desejo de morrer mais freqüente do que outros pacientes psiquiátricos apontando uma clara tendência suicida. Podemos afirmar que a adição também é uma espécie de suicídio lento (Stanton, 1999, Kalina, 1999). E, apesar de a morte ser uma forma de separação, ela parece ser a menos temida pelo adicto. Vários estudos têm documentado que o sistema familiar adictivo costuma ser marcado por muitas mortes e perdas prematuras e traumáticas (Stanton, 1999). Costuma também haver uma clara correlação entre a morte de avós ou pais e o início do uso de drogas. É possível afirmar que estes fatos podem justificar também o superapego visto antes, o medo de se separar e de perder este ente também.  Contudo, paradoxalmente, há uma negação clara da gravidade da condição do adicto, abrindo espaço até a uma espécie de displicência no que diz respeito à proteção com relação à verdadeira situação de risco. Parece que a família se acostumou tanto ao caos que se sente imune a ele. O adicto estará ainda representando todas as mortes da família, em especial a dos avós (Stanton, 1999). Drogar-se também é uma forma de se anestesiar da dor, assim como de estar envolvido no processo autodestrutivo de alguém. Ao mesmo tempo, a morte fica sendo uma forma de martirizar -se – no sentido de “torna-se mártir”. Morrendo, o adicto nunca sairá da família e seu drama será perpetuado no sistema.  Esta perpetuação se dará na forma da transmissão geracional de comportamentos autodestrutivos e superprotetores. Esta herança é transmitida pelo relacionamento dos membros da família, em sua forma de se comunicar.

3.3 – Forma de comunicação das famílias adictivas

Vimos até então alguns padrões relacionais recorrentes na família adictiva, priorizando sua estrutura e suas implicações ao longo do tempo. Nosso objetivo agora será abordar o tipo de linguagem que é utilizada nessas famílias, propiciando que a dinâmica da dependência aconteça. A forma de se relacionar é a característica mais visível ao nos depararmos com um sistema familiar adictivo. Desde a chegada no consultório, a maneira como os membros da família se comportam uns com os outros traduz muitas coisas a respeito do sistema familiar. Isto ocorre porque todo comportamento é uma mensagem e é impossível não se comunicar (Watzlawick et alli, 1993). A comunicação implica observarmos o dito e o não-dito, além da coerência entre estas mensagens. Assim como nos outros itens, encontramos nas famílias adictivas padrões repetitivos de comunicação que estabelecem o tipo de funcionamento que aquele grupo terá. Alguns autores se dedicam especialmente a identificar a forma de comunicação existente em famílias adictivas. Krestan e Bepko (1994) afirmam que o segredo é a linguagem típica da família adictiva, e que sua manutenção seria o principal combustível da adição. O que se tenta esconder não é o uso em si, mas o seu significado e suas conseqüências no sistema.

“O fracasso para designar o problema como sendo um problema resumindo sua negação – tem os mesmos efeitos sobre os quais Bok fala, quando se refere à guarda de segredos: o bloqueio de evidências que evitam que uma pessoa possua informações, as revele, ou faça uso delas. É neste meio misterioso que o sistema familiar adictivo paralisa-se, ocorrendo, então, uma incapacidade para compartilhar ou fazer uso do segredo que todos conhecem” (Bepko, 1994, p. 147).

Black (1990) afirma que as pessoas que nascem em famílias adictivas aprendem desde cedo a negar, minimizar, racionalizar e desprezar seus sentimentos e suas experiências, e a mentir para se protegerem e protegerem a imagem da família. “Outras aprendem simplesmente a nunca falar – a verdade nunca pode ser contada.” ( p. 5 )  Todos os comportamentos descritos anteriormente são um esforço para negar o problema. A negação acontece por meio de mentiras que são contadas com o intuito de impedir a adequada percepção das conseqüências do uso. Pode também acontecer pela própria negação do uso ou pelas distorções sobre suas conseqüências. Para Krestan e Bepko (1994) a negação, como elemento propiciador da manutenção do comportamento adictivo, acontece na família em vários níveis e desde o início da relação com a substância, acompanhando toda a sua evolução. Este fato fica muito claro quando nos remetemos à descrição do processo de dependência vista no primeiro capítulo. Lá afirmamos que a virada do momento de funcionalidade para o de disfuncionalidade dar-se-ia  a partir da minimização na percepção dos danos vividos em tal relação. Concordamos, portanto, com Bepko quando esta afirma que existe uma distorção entre a realidade e a percepção desta, resultando na mentira que o próprio adicto conta para si mesmo, negando as conseqüências do uso. E acrescentamos, como exposto no primeiro capítulo, que este fato também é facilitado pela funcionalidade anteriormente vivida e pela disfuncionalidade agora percebida. Esta situação, então, reforçaria ainda mais a utilidade da negação.

“Eventualmente, a pessoa engajada no processo de negação começa realmente a acreditar nas mentiras que conta aos outros. A mentira básica – “Não estou fazendo o que estou fazendo” ou “O que estou fazendo não tem as conseqüências que parece ter” – eventualmente leva a formas mais profundas de guardas de segredos. O indivíduo começa a contar mentiras para encobrir outras mentiras” (Krestan e Bepko, 1994, p. 148).

O progressivo distanciamento da realidade vivido pelo adicto e resultante da negação traz uma gradual supressão das emoções, fazendo com que o adicto viva num mundo cada vez mais povoado de justificativas para defendê-lo de suas perdas. Krestan e Bepko (1994) sinalizam que este fato se reflete no silêncio como representante da falta de comunicação dos sentimentos. Na medida em que há negação e mentiras, como algum membro da família, incluindo o próprio adicto, poderá falar da vergonha, do medo, da culpa e da raiva? Assim agindo, o adicto forma um padrão de relacionamento baseado na justificação e na racionalização, em que ataca antes de ser atacado, causando grande desagrado aos demais membros da família, que se sentem injustamente atingidos e desrespeitados, com uma sensação de não estarem mais entendendo o adicto, nem se fazendo entender por ele. A negação é, por muitas vezes, o comportamento mais propenso a críticas de pessoas de fora do sistema. Com relação à família adictiva, é comum ouvirmos comentários sobre como esta pode não estar percebendo a gravidade do quadro em que se encontra, ou o quanto a família minimiza situações absolutamente dramáticas. Contudo, se entendermos do ponto de vista sistêmico, vamos compreender a lógica de “tamanho fenômeno”. A adição traz uma ameaça muito grande ao sistema, e a negação é a clara estratégia da família para não “desmoronar” por causa dela. Seria um mecanismo mantenedor do equilíbrio da estrutura, como nos afirma Ramos (1999):

“O alcoolismo, dentro de uma família, traz grande dose de estresse, transformando-se rapidamente numa doença de todo o grupo familiar, como postulou Jackson, em 1954. Esse estresse é o responsável pelo rompimento da instabilidade que, por sua vez, conduz a família a um exagerado apego ao conhecido, cronificando atitudes calcadas em mecanismos reguladores” (p.  209).

Estando o mecanismo da negação intimamente relacionado com a progressão da dependência, conforme visto no capítulo 1, quanto mais ela aumenta, mais mentiras, segredos e silêncios são necessários para lidar com a evolução da adição. Assim, se de um lado o adicto nega a gravidade das conseqüências de seu uso, de outro a família adota o mesmo mecanismo. No começo a família nega primeiramente para si mesma: “Meu filho nunca usou drogas”, “Meu marido não bebeu tanto assim”. Quando o fato fica impossível de ser negado dentro da família, seus membros se esforçam vigorosamente para esconder as situações de perda de controle das pessoas que estão fora do sistema, dando justificativas aos outros pela ausência do adicto em festas, ou pelo seu mau humor. Black (1990) desenvolveu um estudo com filhos de dependentes e afirma que as crianças se tornam especialmente experts na função de proteger o sistema adictivo por meio da mentira e do silêncio. As crianças aprendem desde cedo a não expressar dentro da família seus sentimentos de medo e culpa, pois isto poderia perturbar ainda mais o sistema. Esse comportamento se estende para fora da família trazendo dificuldades no contato com os pares, na medida em que precisam mentir para encobrir o que de fato acontece dentro de suas casas. Assim como as crianças tentam controlar o estresse familiar com seu silêncio, os adultos adotam diversos comportamentos com o mesmo fim, e, muitos deles, em silêncio. Escondem garrafas, jogam fora as drogas que encontram e não contam ao dependente, vão a boca de fumo pedir para o traficante não vender mais drogas ao filho, ou ao bar pedir para o balconista não servir seu marido.

Muitas vezes, quando a família se reúne em uma sala de terapia e é estimulada a falar sobre o que tem feito para minimizar as conseqüências da adicção, seus membros se espantam com o quanto eles sabiam das atitudes uns dos outros, mas mantiveram silêncio. Muitas vezes preferem não compartilhar o que sabem, ficando com todo o peso do que descobriram. “Em outras palavras, uma resposta ao comportamento secreto do alcoólico é um engajamento recíproco no comportamento secreto por parte de outros membros da família” (Krestan e Bepko, 1984, p. 150). Podemos então concluir que, assim como o envolvimento do adicto em seu processo de dependência causa um profundo distanciamento da realidade e, consequentemente, um aumento de seu sofrimento, o mesmo acontecendo com o familiar. Este, cada vez mais envolvido em sua negação, suas mentiras e segredos, acaba por ter dificuldade de perceber a realidade que criou não distinguindo mais suas mentiras de suas verdades. Ou seja, o estilo de vida adictivo do dependente equivale ao estilo de vida de negação exercitado pela família.  Este fato produz um afastamento emocional cada vez maior entre os membros da família, diminuindo a possibilidade de se apoiarem mutuamente no momento em que mais precisam.

“A família oscila entre extremos de profundo silêncio e falta de engajamento e períodos de extrema reatividade que mascaram a emoção autêntica. Uma emoção é expressada como algo mais: a raiva torna-se violência, tristeza torna-se cólera, o medo torna-se fúria, o desespero torna-se profunda necessidade de controlar, a dependência torna-se vergonha. Os sentimentos reais permanecem escondidos e não manifestados”. (Krestan e Bepko, 1995, p.151)

Um outro aspecto importante da linguagem contida no mecanismo de negação presente nas famílias adictivas é que ela priva os membros da família dos recursos adequados para lidar com as situações, já que aspectos destas situações são omitidos, distorcidos ou substituídos por meio da mentira. Na medida em que as pessoas não se expressam verdadeiramente sobre como se sentem em relação ao comportamento adictivo, o adicto muitas vezes se surpreende com o quanto estava incomodando os outros com o seu estilo de vida. Apesar de o familiar reclamar quando o adicto faz algo incômodo para ele, muitas vezes esta reclamação vem sob uma forma acusatória, não específica e distorcida, facilitando, por muitas vezes, a desfocalização do adicto de seu próprio comportamento. Xingar o adicto de “viciado”, irresponsável, dizer que ele está destruindo a vida de sua família, são com frequência expressões de um desespero que não ajudam a encarar a realidade de frente. A linguagem do sistema é muitas vezes voltada para atacar as pessoas e não para enfrentar o problema. É importante lembrar que este estilo de interação comunicacional tende a se tornar um padrão familiar e ser passado como herança através de gerações, até quando o sistema encontrar outra forma de se manter funcionando. Uma outra característica encontrada na linguagem das famílias adictivas é a dificuldade de estabelecimento de limites. Ao cuidarmos dos adictos e seus familiares, percebermos a imensa dificuldade que possuem para lidar com o não. Esta, muitas vezes, no sistema familiar adictivo parece ser uma palavra vazia, carente de significado. Ocasionalmente pode ser usada de forma paradoxal quando se queria dizer sim ou um talvez.  Kalina (1991) afirma que a referida dificuldade se deve ao fato de se encontrar nas famílias adictivas a dificuldade de lidar com os símbolos, porque eles sempre representam uma mediação. E mediação significa espera. Para os membros do sistema adictivo, a demora se torna muito dolorosa, pois os desejos precisam ser satisfeitos de imediato. O adicto não sabe esperar e corre para os efeitos da droga. Os familiares não sabem esperar e correm para controlar o adicto. O não é a espera, e a espera é a morte (Kalina, 1999). Assim, o não tem uma especial conotação negativa tanto para o adicto quanto para a família.  Da mesma forma que o não para o adicto é prenúncio de vazio e morte, para a família seu não é abalado na mais pueril ameaça do adicto em transgredi-lo. Apesar de seus membros entenderem a importância de sustentá-lo, têm muito medo de que ele seja um veneno que extermine o sistema. Ajudar essas famílias a experimentarem a força construtiva do limite, do não, é fundamental para o estabelecimento de relações mais funcionais. A facilitação é outra forma de linguagem muito comum nos sistemas adictivos. Geralmente ela se expressa na forma de uma ajuda dada ao adicto diante das suas dificuldades, impedindo, com o tempo, que o indivíduo possa assumir as conseqüências de seus atos. Esta ajuda pode ser dada por qualquer membro da família que se sinta com capacitação para tal. Na verdade, com relação à adição, ela é a linguagem mais encontrada dentro e fora da família, e é um comportamento muito valorizado socialmente: afinal, não fica bem não ajudar a quem precisa! O adicto gasta toda a sua mesada, que é imediatamente reposta pela mãe ou pelo pai. Ou ele é surpreendido na escola com droga e a mãe esconde este fato do pai, por este ser muito agressivo e brigar com o filho. A esposa, mesmo enraivecida, paga as dívidas do marido no bar. Todos esses comportamentos criam na relação uma expectativa da não capacitação por parte do dependente para lidar com suas escolhas. Dito de outra forma a mensagem passada seria: “Estaria perdido sem você”, por parte do adicto, e “Você não é nada sem mim”, por parte do facilitador. Figurativamente falando seria como se o adicto desse um “atestado de competência” para o familiar que o “salva” e o familiar ao salvá-lo desse ao adicto um “atestado de incompetência” por não conseguir se salvar. Obviamente esta mensagem não é concretizada nas primeiras ajudas; contudo, torna-se facilitação quando passa a ser uma presença constante na relação das pessoas envolvidas.  A mudança deste tipo de interação está no bojo do tratamento da adição, que precisará trazer alternativas que proporcionem uma transformação no que tange à interação – competência da família e incompetência do adicto. O equilíbrio das competências precisará ser conquistado a partir da assunção das responsabilidades que cabem ao adicto e da desistência de controle por parte da família.

A linguagem da adição também pode estar nas famílias com ou sem a presença das drogas. Muitos estudos como o de Stanton (1999) encontram uma relação positiva entre a adição e a presença de outros comportamentos compulsivos na família, tais como compulsão alimentar, tabagismo, compulsão sexual e dependência de jogo. Nessas famílias, o uso indiscriminado de medicamentos também é encontrado, bem como uma facilitação para sua aquisição e abuso. Estes fatos propiciam o aprendizado de comportamentos adictivos e de alívio imediato de dores e mal-estar, criando um ambiente propício para o desenvolvimento da realidade da adição.

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