Lembrando Kardec – Vício
Nazareno Tourinho
No artigo precedente dissertamos em torno da virtude. Neste, vamos nos ater ao predicado que lhe é oposto, ou seja, o vício.
Dizemos oposto, contrário, sem grande convicção, porque a palavra vício, como o termo moral, ultimamente ganhou do público um entendimento às vezes diverso do original, etimológico, semântico, que o liga necessariamente ao mal, assim como a virtude está sempre vinculada ao bem.
Hoje, qualquer tendência constante de conduta, qualquer inclinação natural para fazer isso ou aquilo ou qualquer costume compulsivo é designado vício, seja ou não maléfico, e é comum escutarmos críticas a pessoas viciadas em trabalhar.
As expressões verbais, por força dos novos tempos que fazem o progresso da sociedade, alterando os seus valores tanto quanto as suas estruturas, vão se tornando cada vez mais ambíguas, ensejando interpretações diferentes. Isso, no seio do nosso movimento ideológico, é utilizado pelos companheiros laicos e místicos, para distorcer como lhes apraz os conceitos de Allan Kardec, a fim de justificar suas teses sofísticas, agnósticas e aéticas.
Antigamente quando falávamos em moral todo mundo sabia que estávamos aludindo à louvável e indiscutível regra de bem viver; nos dias presentes para numerosos indivíduos, que não suportam preconceito por razões óbvias e justas, moralismo é sinônimo de comportamento hipócrita.
Nós, que podemos ser verdadeiramente espíritas (porque somos independentes e cristãos e não cristólatras), precisamos dispensar cuidadosa atenção à linguagem e não ter medo de tomar o partido do bem contra o mal, porquanto os dois existem e então sempre atuando um contra o outro; quem procura se colocar acima de ambos, como o fez Nietzsche, o papa do ateísmo acadêmico, não passa de um orgulhoso ilustrado mas insano. Cumpre-nos, consequentemente, na teoria e na prática, assumir a moral descartando toda espécie de anarquismo social ou filosófico que respalda o uso da liberdade de modo irresponsável, em busca do prazer com descaso pelo dever.
Impõe-se-nos distinguir o procedimento útil do nocivo ou neutro, o hábito do vício. Sobre este tema, há mais de cinquenta anos, quando ainda éramos jovens, escrevemos na revista, o Reformador, edição de setembro de 1963, uma crônica na qual salientamos que, de todos os nossos vícios, o pior é o de somente notar os defeitos dos semelhantes, não vendo os próprios. Terminamos a referida crônica assim:
“Aquilo que em nós seria um vício talvez seja apenas um hábito em nossos conhecidos. É difícil distinguir. De qualquer maneira, seja hábito ou seja vício, o que não ignoramos é que o hábito de condenar os vícios alheios é um vício pouco habitual nas criaturas virtuosas”.
Em O Livro dos Espíritos Allan Kardec faz criterioso e extenso estudo das leis morais, que ocupa mais de cem páginas do volume (toda a TERCEIRA PARTE). A fim de fechar com chave de ouro a porta deste artigo, que já se alongou suficientemente, leiamos este edificante trecho transcrito da página 412 da 80ª edição do mencionado livro feita pela FEB:
“895. Postos de lado os defeitos e os vícios acerca dos quais ninguém se pode equivocar, qual o sinal mais característico da imperfeição?
O interesse pessoal. Frequentemente, as qualidades morais são como, num objeto de cobre, a douradura que não resiste à pedra de toque. Pode um homem possuir qualidades reais, que levem o mundo a considerá-lo homem de bem. Mas, essas qualidades, conquanto assinalem um progresso, nem sempre suportam certas provas e às vezes basta que se fira a corda do interesse pessoal para que o fundo fique a descoberto. O verdadeiro desinteresse é coisa ainda tão rara na Terra que, quando se patenteia, todos o admiram como se fora um fenômeno.
O apego às coisas materiais constitui sinal notório de inferioridade, porque, quanto mais se aferrar aos bens deste mundo, tanto menos compreende o homem o seu destino. Pelo desinteresse, ao contrário, demonstra que encara de um ponto mais elevado o futuro.”
Amigos leitores, este artigo foi escrito em vida pelo já saudoso Nazareno Tourinho.
Fonte: Correio Espírita
(*) Nazareno Tourinho foi decano da Academia Paraense de Letras, premiado como escritor fora do Brasil, autor de vinte e oito obras espíritas, uma publicada também na Alemanha, outra em parceria com o dr. Carlos Imbassahy na obra O Poder Fantástico da Mente, editada há cinquenta anos, em 1967. Suas últimos obras foram publicadas e estão sendo distribuídas pela Editora LACHÂTRE.