16 – O Testemunho de Tomé

O TESTEMUNHO DE TOMÉ

Conta a narrativa de Marcos que, voltando Jesus de uma das suas excursões, se encaminhou para o território de Dalmanuta, onde vários fariseus se puseram a discutir com ele, para experimentá-lo. Entremostrando a dor que lhe causava a incompreensão ambiente, o Mestre exclamou com a sua energia serena: – “Por que pede esta geração um sinal do Céu?”

Era freqüente buscarem o Messias com a preocupação exclusiva do maravilhoso.

Alguns exigiam os milagres mais extravagantes, no ar, no firmamento, nas águas.

Jesus não afirmava ser o Filho de Deus?!… No exercício do seu ministério, não  expulsara espíritos malignos, não curara paralíticos e leprosos? Os fariseus,   principalmente, eram os que desejavam crer nos ensinamentos novos, mas,  dentro das normas do velho egoísmo humano, reclamavam prévias  compensações do sobrenatural ao apoio do dia seguinte.

De todos os discípulos, era Tomé o que mais se preocupava com a dilatação, que lhe parecia necessária, da zona de influenciação do Senhor junto dos homens considerados mais importantes e mais ricos. Não raro, insistia com Jesus para que atendesse às exigências dos fariseus bem aquinhoados de autoridade e de riqueza.

Naquele dia de breve repouso em Dalmanuta, o Mestre descansava na choupana de um velho pescador por nome Zacarias, quando o discípulo surgiu inesperadamente, reclamando-lhe a atenção nestes termos:

– Senhor, numerosos homens de importância estão na localidade e desejam o sinal de vossa missão divina!

Reparando que Jesus guardara silêncio, Tomé continuou a falar, desejoso de acender entusiasmo em torno do seu alvitre.

– São altos funcionários de Herodes, em companhia de doutores de Jerusalém, que excursionam por estas paragens… Além disso, estão acompanhados de patrícios romanos, interessados em conhecer o lago e as suas aldeias mais influentes. Esses viajantes ilustres fizeram-me portador de um convite atencioso e amável, pois vos esperam em casa do centurião Cornélio Cimbro!…

Jesus, entretanto, depois de longo silêncio, no qual pareceu examinar detidamente a atitude mental do interlocutor, perguntou com serenidade, mas em tom algo doloroso:

– Que desejam de mim?

– Querem conhecer-vos, Mestre! – replicou o apóstolo, mais confortado.

– Não é necessário que me vejam a mim, mas que sintam a verdade que trago de Nosso Pai – redarguiu Jesus, com tranquila firmeza.

Deixando transparecer o desgosto que aquela resposta lhe causava, Tomé insistiu:

– Mestre, Mestre, atendei-os! … Que será do Evangelho do Reino e de nós mesmos, sem o apoio dos influentes e prestigiosos? Acreditais na vitória sem o amparo das energias que dominam o mundo? Mostrai-vos a esses homens, revelai-lhes o vosso poder divino, pois, ao demais, eles apenas desejam conhecer-vos de perto!.

– Tomé – exclamou o Senhor, com energia -, Deus não exige que os homens o conheçam senão no santuário do perfeito conhecimento de si mesmos. Eu venho de meu Pai e tenho de ensinar as suas verdades divinas. Nunca reclamei dos meus discípulos as suas homenagens pessoais, apenas tenho recomendado a todos que se amem, reciprocamente, através da vida!

E, desfazendo as ponderações descabidas do discípulo, continuou:

– Julgas, então, que o Evangelho do Reino seja uma causa dos homens perecíveis? Se assim fosse, as nossas verdades seriam tão mesquinhas como as edificações precárias do mundo, destinadas à renovação pela morte, nos  ternos caminhos do tempo. Os patrícios romanos e os doutores de Jerusalém não terão de entregar a alma a Deus, algum dia? Quem será, desse modo, o mais forte e poderoso: Deus, que é o Pai de sabedoria infinita, na eternidade de sua glória, ou um césar romano, que terá de rolar do seu trono enfeitado de púrpura, para o pó tenebroso da sepultura?!

Tomé escutava-o, surpreso e entristecido; todavia, com o propósito de se justificar, acrescentou comovido:

– Mestre, compreendo as vossas observações divinas; no entanto, esses forasteiros desejavam apenas um sinal de Deus nos céus.

– Mas, se são incapazes de perceber a presença do Nosso Pai, como poderão reconhecer-lhe um simples sinal?

– perguntou Jesus, com todo o vigor da sua convicção. – Os pais humanos sabem que sem o seu esforço, ou sem a generosa cooperação de alguém que os substitua, à frente da família, não seria possível o desenvolvimento de seus filhos, no que se refere à assistência material; contudo, os homens do mundo encontram a casa edificada da natureza, com a exatidão de suas leis, e timbram sempre em negar a assistência da Providência Divina. Vai, Tomé, e dize-lhes que o Evangelho do Reino não se destina aos que se encontrem satisfeitos e confortados na Terra; destina-se justamente aos corações que aspiram a uma vida melhor!

Ante a firmeza das elucidações, o apóstolo não mais insistiu. Ainda, porém, interrogou, hesitante:

– Mestre, qual será então a nossa senha? Como provar às criaturas que o nosso esforço está com Deus?

– Uma só lágrima, que console e esclareça um coração atormentado – explicou Jesus -, vale mais do que um sinal imenso no céu, destinado tão-somente a impressionar os miseráveis sentidos da criatura. A nossa senha, Tomé, é a nossa própria exemplificação, na humildade e no trabalho. Quando quiseres esclarecer o espírito de alguém, nunca lhe mostres que sabes alguma coisa; sofre, porém, com as suas dores e colherás resultado. A redenção consiste em amar intensamente.

Se te interessas por um amigo, suporta os seus infortúnios e imperfeições, anda em sua companhia nos dias amargos e dolorosos! O nosso sinal é o do amor que eleva e santifica, porque só ele tem a luz que atravessa os grandes abismos. Vai e não descreias, porque não triunfaremos no mundo somente pelo que fizermos, mas também pelo que deixarmos de fazer, no âmbito das suas falsas grandezas! …

Desde esse dia, o apóstolo Tomé reformou a sua concepção sobre as mensagens

do céu, no capítulo dos milagres; entretanto, não conseguia escapar a pequeninas indecisões, em matéria de fé. Não podia excluir de sua imaginação o desejo de uma vitória ampla e fácil do Evangelho, pela renovação imediata do mundo.

Dentro em pouco, porém, a onda das perseguições vinha desfazer a suave e divina ventura. O Mestre fora preso. Com exceção de João, que se conservara junto de sua mãe, todos os discípulos se afastaram espavoridos.

Também ele não resistiu às grandes vacilações do triste momento. Debandara.

Todavia, depois, sentira o coração pungido de remorsos acerbos. Almejava contemplar o Mestre querido, ouvir, se possível, pela última vez, uma palavra de exprobração dos seus lábios divinos. Disfarçando-se, então, de maneira a tornar-se irreconhecível, a fim de se livrar das iras da multidão, incorporou-se, nas ruas movimentadas, ao ruidoso cortejo. Seu coração batia acelerado. Rompeu a massa popular e aproximou-se do Messias, que caminhava sob a cruz a passos  vacilantes, seguido de perto pelos soldados que o protegiam contra os ataques da plebe. Sentiu que uma grande angústia lhe dilacerava as fibras mais delicadas da alma. Contudo, seguiu sempre, até que o madeiro se ergueu, exibindo o sentenciado sob os raios do Sol claro, no topo de uma colina, como para apresentar espetáculo às vistas do mundo inteiro.

Tomé contemplou fixamente o Mestre e notou que o espírito se lhe mantinha firme. Sua fisionomia serena, não obstante o martírio daquela hora, não refletia senão o amor profundo que lhe conhecera nos dias mais lindos e mais  tranquilos.

Seus pés, que tanto haviam caminhado para a semeadura do bem, estavam ensanguentados. Suas mãos generosas e acariciadoras eram duas rosas vermelhas, gotejando o sangue do suplício. Sua fronte, em que se haviam abrigado os pensamentos mais puros do mundo, se mostrava aureolada de espinhos.

Tomé se pôs a chorar discretamente; logo, porém, como se o olhar do Mestre o buscasse, entre os milhares de criaturas reunidas, observou que Jesus o fitara e, magnetizado pela sua feição divina, avançou, hesitante. Desejava escutar daqueles lábios adorados a reprovação franca e sincera que merecia o seu condenável procedimento, fugindo ao testemunho da hora extrema. Aproximou-se ofegante da cruz e, deixando perceber que apenas cedia a uma necessidade espiritual naquele instante supremo, ouviu Jesus dizer-lhe em voz quase imperceptível:

– Tomé, no Evangelho do Reino, o sinal do céu tem de ser o completo sacrifício de nós mesmos!…

O apóstolo compreendeu-lhe as palavras e chorou amargamente.

Não obstante a advertência do Messias, feita do cimo da cruz da humilhação e do sofrimento, o discípulo continuava naquela atitude que se caracterizava por dúvidas quase invencíveis. Considerava o Cristo a mais alta figura da Humanidade, em se tratando do amor que ilumina as estradas escabrosas da vida material; mas, no que se referia ao raciocínio, Tomé mantinha certas restrições.

Sua alma se deixava empolgar por inúmeras indecisões, quando a notícia    fulgurante da ressurreição estalou em Jerusalém, por entre vivas  manifestações de alegria.

Maria de Magdala, Pedro, João, bem como outros companheiros, tinham visto o Senhor, tinham-lhe escutado a palavra consoladora e divina. Incerto de si mesmo, quase vencido na sua escassa fé, o discípulo procurou os amigos diletos, ansiando pela manifestação do Mestre adorado. Reunida a pequena comunidade, depois das preces habituais, Jesus penetrou na sala humilde com sereno sorriso, desejando aos companheiros paz e bom ânimo, como nos dias venturosos e risonhos da Galiléia. Tomé, sentindo o coração bater-lhe precipitado, ergueu os olhos. O Senhor, percebendo-lhe os pensamentos mais ocultos, aproximou-se do discípulo de fé vacilante e o convidou a tocar-lhe as chagas.

Depois de pronunciar as palavras que as narrativas apostólicas registraram, acrescentou bondosamente: – “Tomé, põe a tua mão nas minhas chagas e não te esqueças de que é o sinal..

Então, a razão fria do apóstolo notou que um clarão novo o invadia e lhe penetrava a alma. Compreendeu finalmente que o martírio do coração que ama se reveste de misterioso poder. Tocado pela humildade do Mestre redivivo, prosternou-se e chorou. Suas lágrimas eram de ventura e lhe proporcionavam ao espírito um júbilo para cujo preço todos os tronos da Terra eram miseráveis e pequeninos. Sua alma acabava de vencer uma grande batalha. O coração triunfara do cérebro, o sentimento lhe acrisolara a fé.

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