O saber, em termos de conhecimento adquirido pela humanidade, numa visão teórica e simplificada, pode ser apreendido a partir de três vertentes principais, através da vivência do cotidiano, na qual o homem vai se tornando sábio à medida em que os percalços da experiência humana vão lhe permitindo distinguir o certo do errado, o pior do melhor e, daí em diante, fazer melhores escolhas para seu conforto e segurança.
A segunda fonte de acúmulo de saber é fornecida pelo cientista que, atuando no mundo físico, vai desenvolvendo as teorias do conhecimento científico que, de maneira sistematizada, as suas experiências vão confirmando.
Finalmente, aprendemos pelas revelações transcendentes de místicos, cuja consciência sobrepassa a realidade física objetiva para se inteirar, subjetivamente, de verdades novas e predizer resultados que não dependem da experiência física.
Com base na fisiologia cerebral podemos discutir as possíveis implicações neurológicas da experiência mística. Temos a impressão de que esta vivência transcendente é uma função pouco explorada do nosso inconsciente.
Freud e Jung investigaram profundamente o psiquismo humano através da psicanálise mergulhando no inconsciente individual e coletivo.
A internalização daqueles nossos desejos, que não puderam se manifestar como expressão de um prazer ilimitado, criaram um mundo interior em permanente ebulição.
No cotidiano de nossas vidas, a expressão dos nossos atos corriqueiros ou aqueles meticulosamente elaborados pelas nossas decisões racionais, estão contaminados pelas intenções disfarçadas daqueles desejos inconscientes reprimidos.
Os conflitos e traumas emocionais marcam profundamente o texto psíquico deste inconsciente.
O pai de uma adolescente entra em crise explosiva de raiva quando esta lhe comunica que se inscreveu no vestibular de psicologia.
Ela se afasta chocada, confusa e sem argumentos. Os dois não se lembram que anos antes, ao se candidatar a um emprego, o pai foi eliminado justamente nos testes psicológicos.
Outros inúmeros exemplos poderiam ser levantados para ilustrar a dinâmica da força do inconsciente.
Na atualidade, os neurocientistas, reacenderam seus interesses para a interação cérebro-mente e, desde então, o papel do inconsciente, do ponto de vista neurológico vem merecendo destaque com aspectos diversos do inconsciente Freudiano.
Tentando fazer uma análise didática deste “inconsciente neurológico” abordaremos dois “cortes” funcionais da atividade cerebral para nossa argumentação.
Analisaremos a fisiologia dos gestos motores e de algumas atividades cognitivas.
Nestes dois módulos, poderemos registrar a participação ativa da consciência ao lado de um conteúdo tanto gestual, quanto intelectual inconsciente que a gente mal se dá conta do seu envolvimento.
Cada ato motor se manifesta como atitude reflexa, automática ou voluntária estando hierarquizados tanto anatômica como fisiologicamente. Estes três componentes interagem em conjunto em qualquer um dos nossos gestos, embora, possamos exemplificá-los isoladamente. Quando um cisco nos atinge os olhos, nós piscamos as pálpebras numa atitude reflexa. Ao caminharmos, ao mastigarmos um alimento e ao deglutirmos um gole de água estamos fazendo movimentos puramente automáticos previamente aprendido. Ao erguermos a mão para tocar e apanhar um objeto utilizamos os neurônios de atividade voluntária.
O ato voluntário é intencional e consciente ao passo que os gestos reflexos e os movimentos automáticos são essencialmente inconscientes.
No decurso de nossas atividades cotidianas estamos continuamente sob domínio inconsciente, remexendo as mãos, movimentando os braços, mudando nossas posturas corporais ou expressando uma mímica que reforça com gestos nossa linguagem com palavras.
Esta constelação de gestos, que freqüentemente estigmatizam nosso modo de ser, são realizados inconscientemente. A maioria de nós é, às vezes, mais reconhecido pelos seus atos motores inconscientes, pelos seus trejeitos, pelas suas expressões sisudas ou extrovertidas, do que pelo seu próprio nome.
Nossos gestos inconscientes falam uma linguagem que nossos filhos e nossos amigos captam com facilidade. Eles extrapolam nossas intenções declaradas porque traduzem de maneira muito forte nosso estado de humor.
Realizações motoras complexas ficam organizadas em nosso cérebro depois de um processo de aprendizado. O ato de vestir ou de amarrar os cordões do sapato são bons exemplos destes atos práxicos. Inicialmente, passamos por uma certa dificuldade em aprendê-los e realizá-los corretamente.
Nesta fase, cada etapa de gestos é feita conscientemente exigindo algum esforço mental. Depois, aprendida a sucessão de gestos que compõem o ato pretendido, a programação motora passa a ser feita com facilidade e competência. Aos cinco anos de idade já amarramos o tênis ou vestimos a camisa como qualquer adulto.
Uma prova de que este programa motor nos orienta inconscientemente pode ser sentida ao nos dirigirmos correndo a uma escada rolante sem sabermos que ela está parada. Vamos atingi-la andando “mentalmente” e, por alguns segundos, continuaremos a caminhar no mesmo passo, embora, contrariados, tenhamos que galgar seus degraus passo a passo.
Podemos, também, realizar testes simples para registrarmos esta programação motora inconsciente. Colocando uma folha de papel no chão pedimos para alguém caminhar de um lado para outro, mas, sempre que passar pelo papel terá que pisá-lo. Independente da velocidade do caminhar ou da direção que ele der à marcha, será sempre possível acertar o alvo, pisando o papel no chão.
Fiz isto com meu neto de três anos, pedindo que ele, correndo, pisasse num inseto que coloquei no chão. Com as perninhas titubeantes ele optou por pegar o bichinho com as mãos.
As funções cognitivas compreendem a linguagem, a atenção, a memória, entre outras. Elas nos permitem interagirmos com o mundo exterior de maneira consciente.
Por outro lado, certas atividades complexas nesta área são puramente inconscientes e, curiosamente, fundamentais para nossa existência.
São exemplos marcantes a configuração da nossa imagem corporal e a noção inconsciente do Eu.
A criança ao se desenvolver, expressando sua intensa atividade motora, gesticulando no espaço, tocando seu corpo e alcançando os objetos ao seu alcance, vai organizando sua imagem corporal e a perspectiva espacial do ambiente onde se movimenta.
A partir de um ano de idade, vamos aprendendo a andar com nossas próprias pernas e, ao andarmos, vamos nos locomovendo entre os móveis de uma sala, descobrindo a largueza ou a estreiteza de caminhos por onde transita nosso corpo, sem atropelos.
Em qualquer ambiente, dispomos da precisão das nossas proporções em relação aos objetos presentes no espaço por onde nos deslocamos.
A imagem corporal inclui, também, o alcance e a direção do nosso olhar, conjugado com nossos gestos. Só assim, conseguimos estender a mão para alcançarmos um objeto.
Com a noção de imagem corporal deduzimos que nossa mente se estende além dos limites do cérebro. O desenvolvimento da criança se acompanha de um reconhecimento corporal por inteiro. Com gestos ela vai se inteirando das partes que compõe seu corpo e das dimensões do espaço que a envolve. O processo é lento, dura anos, mas, é exatamente como alguém que vai aos poucos se incorporando de uma vestimenta nova, complexa e cheia de recursos.
A mente se instrumentaliza do cérebro para atuar no meio exterior, mas, psiquicamente ela preenche todo o corpo. E, curiosamente, a observação corriqueira mostra que, inclusive, nossas vestes, fazem parte deste “corpo mental” que nossa imagem corporal idealiza. A personalidade se expressa na maneira de cada um se vestir.
Psiquicamente nós nos “enxergamos” dentro de um espaço físico cujos limites percebemos inconscientemente e exteriorizamos para além das dimensões do nosso corpo, a influência da nossa mente. O ambiente próximo de onde nos acomodamos constrói uma “psicosfera” onde se faz sentir as oscilações do nosso psiquismo.
Cada um de nós tem noção exata da sua individualidade mesmo reconhecendo nossa incapacidade de dominar por inteiro as atividades do nosso organismo. Temos sistemas de controle autônomo para nossas atividades viscerais e que independem da vigilância da nossa vontade.
Assim, podemos respirar normalmente sem qualquer comando para os nossos pulmões. Da mesma maneira, bate o coração e circula nosso sangue sem o controle da nossa vontade.
Outro “controle” mental inconsciente atua flexibilizando a contratura ou o relaxamento de grupos musculares que mantém nossa postura corporal. Sem ele nós andaríamos rígidos e robotizados ou desmantelaríamos como bonecos de pano.
Há porém, dentro deste mosaico de funções da mente, um fator integrador da nossa individualidade que é nossa consciência do Eu.
Cada um de nós tem a posse dos seus órgãos, das suas pernas, das suas mãos, do seu coração e até mesmo dos seus sentimentos, das suas emoções e da própria consciência. Porém, nenhuma destas partes é a essência de si mesmo. O Eu é nossa própria individualidade personalizada e , mesmo sem sabermos claramente o que Ele é, podemos ter a consciência de que somos Ele.
É interessante percebermos que o Eu parece ser o autor de um fluxo contínuo de idéias, que atua em nível consciente ou não de nossas decisões e comportamentos.
Neste ponto, podemos destacar que, neurologicamente, consciência e inconsciente poderiam ser apenas estágios mentais em hierarquias diferentes, mas, essencialmente uma mesma função que implica na presença do Eu.
A atividade contínua deste Eu nos mantém “ouvindo” uma voz interior que nos faz participar dos jogos da vida.
Os julgamentos que fazemos dos fatos cotidianos sofrem mudanças dinâmicas ininterruptas. Isto decorre da participação do Eu que faz interpretações “on line” das pessoas e dos acontecimentos.
Trabalhamos apenas com pequenas “pistas” para fazermos reconhecimento das feições de nossos amigos. Imagens de uns poucos traços fisionômicos de pessoas que não vemos há anos, desencadeiam um fluxo de recordações mentais que o Eu seleciona para fazer a identificação precisa. A meio caminho desta seleção de imagens, podemos notar o jogo de mudanças rápidas de opinião entre lembranças de uma ou outra pessoa, mais ou menos semelhante, mais ou menos conhecida.
Numa corrida de cavalos ou numa disputa de natação, é comum irmos mudando nosso julgamento de quem será o primeiro colocado. São exemplos desta dinâmica da visão “on line” que fazemos do mundo.
Há um diálogo contínuo entre o Eu e a consciência. São vozes interiores que manipulam nossas percepções, combinando experiências aprendidas com senso-percepções atuais nos levando a tomar decisões e formar opiniões.
De permeio, a lógica destes raciocínios íntimos sofremos ingerência de estados emocionais freqüentemente insuspeitos. Aprendemos que, por mais racionais que sejam nossas decisões, elas estão sempre impregnadas de emoções.
No dia a dia, percebemos o domínio destas vozes interiores ao nos prepararmos para pedir um aumento de salário, para cortejar uma pretendente ou ao nos dirigirmos ao diretor da escola para justificarmos uma falta. Em todas estas situações elaboramos exaustivamente uma opinião prévia das possíveis respostas que nosso diálogo provocará.
Freqüentemente, opiniões pré-concebidas sobre nossos intelectores, prejudicam um resultado melhor das nossas propostas.
É comum errarmos no julgamento que fazemos dos outros, justamente porque ele se baseia, quase sempre, no conteúdo emocional do nosso inconsciente.
Interpretamos a realidade através de imagens psíquicas e podemos dizer que, neurologicamente, não vemos os objetos, na realidade enxergamos o que “pensamos” estar vendo. Podemos ver com os olhos mas, é a mente quem dá significado às coisas. “Não vemos as ondas luminosas, nós enxergamos as cores, não ouvimos as ondas sonoras , nós percebemos os tons”.
O neurologista está acostumado a avaliar o estado de consciência de seus pacientes e, é clássico, quando ocorre um comprometimento da consciência, quantificar em níveis de maior ou menor profundidade este comprometimento.
Os estados superficiais da consciência correspondem ao despertar, ao estado de alerta ou de vigília. A medida em que ocorre um embotamento da consciência vai se entrando em sonolência, torpor e, no seu estágio final, em coma.
Esta visão, no sentido vertical, em que se analisa a consciência em hierarquias de comprometimento mais superficial ou mais profundo é muito acanhada para se compreender todo envolvimento que faz nossa mente, de si mesmo e do mundo físico e psíquico onde se interrelaciona.
A consciência, num sentido horizontal, pode ser estudada na sua extensão em amplitude, do estado crepuscular ao êxtase.
Podemos ampliar o “alcance” de nossa consciência através da expansão das nossas senso-percepções. A meditação, a concentração e a introversão nos permitem vivenciar realidades psíquicas não experimentadas fisicamente. Não estamos falando de exercícios de imaginação mas de sensações psíquicas inovadoras.
Parece-nos que é exatamente esta a experiência mística, em que nossa mente explora o conteúdo deste inconsciente que descrevemos atrás, tomando conhecimento das coisas através de uma vivência psíquica com os acontecimentos. Os objetos são envolvidos pela mente e apreendidos pelo que têm em sua essência e não pelos seus rótulos. Os fatos passam a ser vistos com naturalidade porque só tem valor pelo seu significado. Os objetivos deixam de ser centralizados no Eu. A superação do Eu nos permite uma relação interpessoal mais harmônica e abrangente. Neste “campo” expandido da consciência podemos registrar a sintonia de outras mentes e vencer os limites do espaço e do tempo.
Foram destas conquistas transcendentes que aprendemos com os místicos que “sempre que se rasga uma flor abalamos uma estrela”; “o movimento é intrínseco às coisas”; “qualquer partícula contém toda história do universo”; “a consciência se dissolve na contemplação”; “não há posição que não tenha sua negação”.
(Artigo reproduzido do site do autor com a sua autorização)