SOBRE ABORTOS E ABORTOS
Marcelo Teixeira
Júlia foi minha colega de trabalho. Quando ela ingressou na empresa, estava vindo de uma fase de desemprego. Meses depois, ela engravidou do quarto filho, que nasceu em novembro, lembro até hoje. Após a licença-maternidade, voltou com mil histórias para contar sobre a menina que tinha nascido para dar mais cor à vida dela, do marido e dos três filhos mais velhos – duas meninas e um menino.
Certa vez, quando almoçávamos juntos, ela me perguntou sobre a visão espírita do aborto. Disse, então, que o aborto não convinha porque o espírito se liga ao feto no momento em que óvulo e espermatozoide se encontram, que já há vida plena no embrião etc. Júlia, então, para o meu espanto, começou a chorar. E de remorso. Motivo: ela havia feito um aborto na época em que estava desempregada. Detalhe: o marido também estava sem trabalho. Desesperados, com orçamento apertado e três filhos para criar, acabaram optando pela interrupção da gravidez do quarto rebento. Disse a ela para ficar tranquila. Afinal, tempos depois de ela e o marido terem voltado a trabalhar, engravidara novamente e tivera a criança. A meu ver, os amigos espirituais haviam compreendido o sufoco material que a família atravessava e resolveram dar uma chance até a situação se recompor. Como ambos já estavam reinseridos no mercado de trabalho, nova gravidez acontecera e aquele espírito que tanto queria reencarnar havia tido o tão esperado ensejo. Ao saber disso, Júlia compreendeu a grandeza das leis de amor que regem o universo, respirou aliviada e almoçou em paz. E até onde eu percebera, dera adeus ao remorso.
Clarice estava grávida do primeiro filho. Quarto decorado, enxoval comprado. Seria também o primeiro neto de ambos os lados do casal. Por isso, os pais, os sogros, os irmãos e os cunhados de Clarice enchiam-na de mimos. Só que o menino nasceu com sérios problemas e durou pouquíssimas horas. Luto na família! Frustração geral! Clarice entrava no quartinho que seria do bebê e começava a chorar. Só que, em dado momento, deu-se conta que estava viva, era moça, tinha um marido e uma carreira e seguiu adiante, na certeza de que engravidaria novamente. E engravidou! Só que, por volta do terceiro mês, teve rubéola, doença que costuma acarretar malformações no feto, microcefalia, surdez, cegueira… Alguns familiares começaram a falar em aborto. Clarice e o marido, no entanto, resolveram dar uma chance à criança. Ela viria ao mundo e seria amada do jeito que viesse! E nasceu uma menina com uma anomalia mínima: um dedo faltando em uma das mãos. Somente isso! Depois dela, o casal teve mais dois filhos. A primogênita, hoje, é uma profissional liberal e mãe de família. E quase ninguém percebe que ela tem quatro dedos na mão esquerda. Ou será na direita? Nem sei, pois nunca prestei atenção!
Valéria tinha dois anos de casada quando o marido precisou viajar para o exterior a trabalho. Anos 60 do século XX, muitas novidades acontecendo pelo mundo. O marido estava em ascensão na empresa, e o ensejo de passar seis meses na matriz, na Europa, faria com que ele voltasse ocupando um cargo melhor, o que seria ótimo para a vida do casal.
Só que, um mês após a viagem, Valéria foi assaltada e estuprada. E descobriu-se grávida tempos depois! Apesar de estarmos na década dos hippies, dos Beatles e afins, a tradicional família brasileira de então jogava (e ainda joga) a culpa na mulher. Os pais e sogros de Valéria eram bem rígidos, e ela não contara a ninguém que havia sido estuprada, tamanha a vergonha! Como contar agora que engravidara! Como explicar ao marido o ocorrido quando ele retornasse? Como justificar a barriga de grávida que fatalmente apareceria? Ele acreditaria que a esposa havia sido vítima de um assalto seguido de estupro? Como provar?
Desesperada e sozinha, Valéria recorreu ao aborto. Apesar do procedimento agressivo e traumático, respirou aliviada. Tempos depois de o marido ter regressado, Valéria engravidou da primeira filha. Um menino e outra menina vieram nos anos subsequentes. Quando Valéria contou essa história ao marido, ambos já estavam na casa dos 50 anos. Abraçaram-se emocionados, e ele entendeu perfeitamente a dor, a angústia e a solidão pelas quais a amada passara. Seguiram felizes, com o amor fortalecido.
A gravidez de primeira viagem havia chegado para Marisa. Muita esperança e alegria entre ela e o amado. Jovem e professora de educação física, ela sabia o que era preciso para manter o corpo saudável. Por isso, exercitava-se e mantinha uma alimentação balanceada. Tudo para manter a própria saúde e a do bebê. Subitamente, aos três meses de gravidez, Marisa teve um sangramento intenso. A família correu com ela para o hospital, mas não teve jeito. Aborto espontâneo.
A vontade que Marisa sentiu nos primeiros dias depois da alta hospitalar foi de nunca mais sair de casa. Queria ficar no quarto, deitada. As forças lhe faltavam. Incentivada pela família e amigos, ela foi retomando o ritmo das atividades e recuperou a alegria de viver. Ao comentar comigo o acontecido, observou que a iminência da perda do filho fora, até então, a dor mais aguda que sentira. E completou: – Se eu, que sofri um aborto espontâneo, experimentei uma agonia indescritível a caminho do hospital, fico imaginando a dor moral pela qual passa a mulher que se dirige rumo a um aborto decidido por ela própria. Um aborto que ela fará por estar sozinha, desesperada, sem condições de criar a criança, pressionada ou abandonada pelo companheiro. Nenhuma mulher que tomou a decisão de fazer um aborto encara o procedimento como se fosse uma cirurgia corriqueira. A dor moral que senti ante o aborto espontâneo que sofri foi intensa, mas a dor que uma mulher que opta pela interrupção proposital da gravidez deve ser bem pior. Pensei, então, com os meus botões: – Ainda mais se levarmos em conta o local e as condições em que tudo é feito.
Estas são apenas quatro histórias que mostram como é complexa para a mulher a questão do aborto. Mostram também, como já observado em outro artigo de minha autoria, que um aborto nunca é igual a outro. Por isso, não dá para analisá-los sob a mesma ótica. Muito menos julgá-los.
Se para nós, míseros humanos imortais, essa premissa precisa prevalecer, imaginem para Deus, que é amor, conforme a bela e exata definição do apóstolo João. Se Deus é amor, ele não condena, não julga, não discrimina, não castiga. Nem perdoar ele perdoa, pois, para perdoar, ele precisa ter se ofendido. Mas como Deus não é uma pessoa, e sim uma força maior que não cabe dentro da estreiteza do nosso raciocínio, ele apenas ama!
A Providência Divina, uma espécie de sistema operacional do Criador, entendeu a angústia de Júlia e lhe possibilitou, em nova gravidez, receber a menina que fora abortada porque ela e o marido estavam em situação difícil. Também consolou Clarice quando da perda do primeiro filho e incentivou-a a levar a segunda gravidez a termo. Também deu a mão à Valéria no momento de decisão tão difícil, entendendo-lhe os motivos e possibilitando, mais adiante, o ensejo de ter três filhos com o homem que amava. E finalmente, amparou Marisa no momento do aborto espontâneo e deu-lhe forças para reerguer-se, preparando-a, futuramente, para ser mãe.
Deus age de forma diferente por diversas formas e circunstâncias. Conhece nossas forças e fraquezas, ampara-nos nos momentos de dor, entende nossas limitações e nos dá o ensejo de refazermos a jornada.
Por mais duras que sejam as críticas dos homens e os preceitos dessa ou daquela religião acerca do aborto, tenhamos em mente que Deus conhece intimamente cada um de nós. E que, quando muitos nos apedrejam e nos ferem, é ele que nos abraça e restaura nossas forças.
Marcelo Teixeira
Fonte: Associação Brasileira de Pediatria Espirita (ABPE)