A Lagosta de Sartre
José Herculano Pires
A morte nos espera na sala de partos, quando não se precipita a ir buscar-nos no ventre. Costuma-se dizer que começamos a morrer ao nascer e essa é uma verdade biológica. Mas, apesar dessa naturalidade milenária da morte, não nos acostumamos com ela, por uma razão muito simples, que é o gosto pela vida. Entretanto, quando a vida se prolonga demais, perde pouco a pouco o seu gosto.
O envelhecimento é uma forma de expulsão. A velhice não é uma ceifadora esquelética, mas uma bruxa que nos enxota da vida com sua vassoura voadora. A situação do velho atirado como que num depósito de automóveis gastos e enferrujados é a de um pinguim na Praia Grande: a temperatura o castiga, as juntas lhe doem, a saudade o oprime, a água do mar parece água choca de lagoa tropical, ele quer arrancar-se dali e gritar que está vivo, mas falecem-lhe as energias e a disposição. Ele se acaba, mas ainda não se acabou e a chamazinha tênue da esperança, a última a apagar-se, bruxuleia irônica em seu coração de casa assombrada.
E ainda surgem os poetas gozadores que, como Bilac, dizem coisas assim: “Envelheçamos rindo, como as árvores fortes envelhecem, agasalhando os pássaros nos ramos, dando sombra e consolo aos que padecem”. É demais! Eles não têm mais ramos, nem força, nem capacidade para rir ou sorrir, sua sombra é esquelética e seu consolo mal dá para o consumo próprio. Contam que Victor Hugo envelheceu trotando na sala com os netos nas costas, que o faziam feliz.
Conta Simone de Beauvoir, nas suas memórias da maturidade, que Jean Paul Sartre, ao sentir que envelhecia, preferiu enlouquecer e começou a ser perseguido por enorme lagosta que o acompanhava por toda parte, amedrontando-o. Ele, que não gostava dos psicanalistas, pois um deles já o havia convencido de que era uma personalidade mutilada, pois não possuía o superego, preferiu assim mesmo um tratamento analítico. Simone arranjou-lhe uma jovem enfermeira e esta se engraçou com o doente e o doente com ela. Isso provava que a velhice não estava tão próxima; restavam forças ao filósofo para conquistas amorosas. Mulher decidida e prática, apesar de filósofa, Simone mandou a enfermeira embora, espantou a lagosta e tomou conta do companheiro antes que fosse tarde. Sartre continuou a envelhecer, gastou suas últimas energias na sua volumosa obra Crítica da Razão Dialética e acabou perdendo o seu único olho, pois foi picego desde criança e sempre viu o mundo enviesado, com um olho só. A velhice o abateu e ele hoje confessa que não vai bem das pernas, como nunca foi da bola.
Esse novíssimo episódio da História da Filosofia mostra-nos que o gosto pela vida é de uma resistência a toda prova. Mas há outros fatos que provam o contrário. Por exemplo: o filósofo argentino José Ingenieros temia mais a velhice do que a morte e dizia não querer passar dos quarenta anos. Como passou, suicidou-se. Mas é claro que a preferência pela morte foi forçada e não voluntária. O certo, o normal, é o velho apagar-se naturalmente como lamparina que esgotou o azeite. Os que se preveniram no suicídio ou na loucura ainda conservavam mais mocidade do que podiam supor.
Estas parábolas servem para mostrar que, embora nos acompanhando desde o nascimento, a morte é uma companheira indesejável. Heidegger lembra que até na linguagem comum usamos o reflexivo se para afugentar a morte, como na expressão: “Morre-se”, onde o se transfere a morte para os outros. Morremos, mas sempre a contragosto. Mas quando nos convencemos realmente de que a morte é apenas uma mudança, como dizia Victor Hugo depois de suas experiências espíritas com Madame de Girardin, recebemos a morte com alegria, pois ela nos tira o fardo das costas e nos leva ao encontro dos amigos e seres queridos que foram antes de nós para o outro mundo. Talvez tenha sido por essa certeza que Hugo se divertia com os netos enquanto a esperava.
Os romanos, particularmente na República, gostavam de exaltar a velhice. A senectude já naquele tempo dava os frutos geralmente balofos ou amargos das subgerações de senadores. Cícero insistia na importância da maturidade que dava repouso à alma, amortecendo as inquietações da carne. Casos como o de Marco Antônio e Cleópatra ilustravam bem o perigo das fases heroicas da juventude. Com essa teoria conseguiram envelhecer Roma, que se afundou na perversão da velhice impotente, mas ainda de fogo aceso, em homenagem aos deuses. Passaram, com o tempo, a confiar mais nos gansos do Capitólio do que em suas legiões aguerridas e acabaram massacrados pelos bárbaros.
Não podemos enfeitar a velhice com sugestões ilusórias. Ela é simplesmente o processo natural de desgaste das coisas materiais no decorrer do tempo. Por isso diz o vagabundo de Knut Amsun: “A velhice não nos dá experiências nem sabedoria, mas cabelos grisalhos e rugas”. E acrescenta, lembrando a empáfia e as tolices dos sábios em todo o mundo: “Deus me livre de ser um sábio”. Sartre não é sábio, mas filósofo, ou seja, amante da Sabedoria. Na posição de amante dessa divindade etérea, sempre se manteve em guarda contra o carrancismo dos homens casados com divindades de carne e osso, geralmente demasiado exigentes. Aceitou que Juliette Grecco se fizesse Musa do Existencialismo no Café de Fiore, onde gostava de escrever. Considerou a seriedade como falsa categoria filosófica e, mesmo agora, depois dos sessenta anos e cego, declara às revistas parisienses que não gosta de conversar com pessoas de mais de 30 anos de idade. Era natural que arranjasse, ao sentir que envelhecia, uma companheira sem compromissos para o acompanhar na velhice.
A enorme lagosta que o seguia pelas ruas de Paris era um fantasma desinibido, explorado e devorado impiedosamente pelos franceses, que na loucura por lagostas chegaram quase a provocar uma guerra de lagostas com o Brasil. Isso mostra que Sartre, inimigo de mitos e mitólogos, fugia com sua lagosta das terríveis homenagens que os beócios costumam prestar aos sábios que envelhecem – glorificadores de si mesmos às custas da glória alheia. Nenhum desses aproveitadores se sentiria bem numa solenidade acadêmica em que a enorme lagosta aparecesse nas costas do filósofo, como o bacalhau nas costas do antigo propagandista de Emulsão de Scott.
Talvez a única vantagem da velhice seja o aguçamento da crítica e da irreverência nos velhos inteligentes, que afiaram no correr dos anos a sua lâmina de ironia. O sorriso irônico de Voltaire contribuiu mais para a libertação dos homens das garras da moral burguesa do que o sorriso suspeito e enganador da Mona Lisa. Os burgueses não se livraram até hoje da subserviência dos burgos medievais. A ironia brota da inteligência, e quando trás ainda o cheiro da terra não corta ao léu, mas poda. Podar a burguesia da sua ramagem de subserviência é semear no solo as sementes de um novo mundo, livre de milionários e mendigos. Ele viveu com um pé na cova e o outro na plataforma de foguetes do Cabo Canaveral.
Todos envelhecemos, mas Voltaire soube transformar o seu desgaste orgânico em refinamento do espírito afiando-o como lâmina de navalha. Os clérigos o amaldiçoaram por toda parte e o consideraram morto e enterrado, mas Kardec provou a sua sobrevivência em suas pesquisas mediúnicas da Passage Saint’Anne, em Paris.
Só há uma maneira de fugirmos ao envelhecimento, que é preservando a nossa liberdade espiritual, pois o espírito não envelhece. Os que se fazem independentes em meio à servidão geral podem sorrir como Voltaire da arrogância dos estúpidos, covardes e venais, que esmagam os indefesos com os recursos de suas castas exploradoras, em nome de Deus e das instituições criadas pelos egoístas.
O sorriso de Voltaire salvou o soneto de Bilac, pois se pudermos envelhecer como ele, usando o sorriso irônico ante a farândola dos falsificadores da espécie humana, ajudaremos o mundo a se livrar das aves de rapina. A lagosta de Sartre foi uma encenação inconsciente com esse mesmo sentido. O envelhecimento orgânico está também sujeito à ação do psiquismo. A vontade de cada um pode acelerar ou retardar os processos do desgaste orgânico. Simone mesmo, apesar de sua posição agnóstica, reconhece que não podemos chamar a Humanidade de espécie humana, porque ela supera as condições da animalidade em suas transformações incessantes para um vir a ser imprevisível.
As reações psicológicas provocadas pelo envelhecimento são as mais variadas. Nas pessoas que temem a morte os sintomas da velhice geralmente provocam pânico e sensação de marginalização. Há os que se revoltam e procuram todos os disfarces possíveis para manterem aparência juvenil. Os que encaram com realismo o problema procuram apenas os recursos da gerontologia, tentando apenas evitar o aceleramento do processo. E há os que, à maneira dos antigos romanos, entregam-se ao prazer de uma vida crepuscular, mais contemplativa do que ativa, gozando a perigosa placidez da aposentadoria real ou emocional. O temperamento de Sartre não se adapta a essas formas de acomodação. De certa maneira ele se compensou com a evocação da lagosta gigante, que lhe dava a sensação do perigo, à beira da loucura, que lhe garantia, ao mesmo tempo, a sensação juvenil de pendurar-se na boca de um abismo e a possibilidade de sentir-se galã ao lado da enfermeira. Simone confessa que se ralou de ciúmes, o que deve ter reforçado a permanência psicológica da lagosta.
O caso mais curioso de entrega ativa à velhice ocorreu com o famoso escritor colombiano Vargas Villa, que passou a maior parte de sua vida na Europa, considerando-se intelectualmente francês e emocionalmente italiano. No prefácio de sua novela Íbis, sucesso rococó entre os anos 20 e 30 em todo o mundo, encarava a velhice como a fase fantástica da vida, que lhe tirava as possibilidades do real mas o compensava com a possibilidade de evocar suas antigas lutas e paixões num clima de paz e encantamento. Figurava-se dotado de “umas asas tênues e leves” que lhe permitiam voar ao crepúsculo sobre os campos de seus antigos combates, cheios dos destroços de suas vitórias passadas.
Nem tudo é dor nas dores do mundo. A imaginação humana é capaz de doirar com reflexos de um sol interior as paisagens cinzentas. Vargas Villa se dizia capaz de evocar suas antigas emoções, fazendo-as ressuscitar do estado cataléptico que haviam caído, com a vantagem de não se apresentarem com as trepidações inquietantes do passado. Muitos jovens sonharam, ao lê-lo, com as delícias do envelhecimento, mas poucos conseguiram passar pelos arcos de triunfo dessa visão legendária.
José Herculano Pires, do livro:
O mistério do Ser ante a dor e a Morte