Cultura Espírita

Cultura Espírita

José Herculano Pires

Herculano Pires | União Espírita Mineira

A Cultura Espírita, como observou Humberto Mariotti, filósofo e poeta espírita argentino, é uma realidade bibliográfica, edificada no plano das pesquisas e dos estudos. Socialmente se reduzia uma parte mínima do movimento espírita mundial, pois a maioria dos espíritas a desconhece. Compreende-se que isso acontece em consequência das campanhas deformadoras e difamatórias das Igrejas e das Instituições Científicas, especialmente as de Medicina, contra o Espiritismo. Mas grande parte da culpa cabe aos próprios espíritas cultos, que, em sua maioria, se mostraram displicentes, por acomodação indébita ou preguiça mental. Por outro lado, a vaidade e o pedantismo intelectual de muitos espíritas os afastaram das pesquisas sobre os mais importantes aspectos da doutrina, para se entregarem a elucubrações pessoais gratuitas, dispersivas e não raro absurdas. O desejo vaidoso de brilhar aos olhos vazios do mundo levou muitos deles a querer adaptar o Espiritismo às conquistas científicas modernas, ao invés de mostrarem a subordinação dessas conquistas ao esquema doutrinário. Outros quiseram atrevidamente atualizar a doutrina e outros ainda se aventuraram a corrigir Kardec. Essas atitudes não deram o proveito pessoal que desejavam e serviram apenas para incentivar as mistificações.

Toda nova cultura nasce da anterior. Das culturas anteriores nasceu a cultura moderna, carregada de contribuições antigas. Mas o aceleramento da evolução cultural a partir da II Guerra Mundial fez eclodir quase de surpresa a Era Tecnológica. O materialismo atingiu o seu ápice e explodiu para que as entranhas da matéria revelassem o seu segredo. E esse segredo confirmou a validade da Cultura Espírita marginalizada no plano bibliográfico. Começou assim o desabrochar de uma Nova Civilização, que é a Civilização do Espírito. “A finalidade da Educação — escreveu Hubert — é instalar na Terra, pela solidariedade de consciências, a República dos Espíritos”. Essa foi a proclamação da Nova Era, feita na França de Kardec, na Paris da sua batalha pelo Espiritismo.

Mas para que uma civilização se desenvolva é necessária a integração dos homens nos seus princípios e pressupostos. Uns e outros se encontram nos livros de Kardec, mas se esses livros não forem realmente estudados, investigados na intimidade pro­funda dos textos e transformados em pensamento vivo na realidade social, a civilização não passará de uma utopia ou de uma deformação da realidade sonhada. Por mais frágil e efêmero que seja o homem na sua existência, é ele que dá vida ao presente e ao futuro, é ele o demiurgo que modela os mundos. Para o homem espírita construir a Civilização do Espírito é necessário que a viva em si mesmo, na sua consciência e na sua carne, pois é nesta que a relação da consciência com o mundo se realiza. E para isso não bastam os livros, é necessário o concurso de todos os meios de comunicação: a palavra, a imprensa, o rádio, a televisão, e mais ainda, a prática intensiva e coletiva dos princípios doutrinários de maneira correta e fiel. Se o homem espírita de hoje não compreender isso e dormir sobre os louros literários, a Civilização Espírita abortará ou será transformada numa simples caricatura da fórmula proposta, como aconteceu com o Cristianismo. É disto que os espíritas precisam tomar consciência com urgência. Ou acordam para a gravidade do problema ou serão esmagados pelo avanço irrefreável dos acontecimentos no tempo.

A idéia comodista de que Deus faz e nós desfrutamos ou suportamos não tem lugar no Espiritismo. Pelo contrário, neste se sabe que o fazer de Deus no mundo humano se realiza através dos homens capazes de captar a sua vontade e executá-la. Não há milagres nem ações mágicas na Natureza, onde a vontade de Deus se cumpre através dos Espíritos, desde o controle das formações atômicas até o crescimento dos vegetais. Dizia Talles de Mileto, o filósofo vidente, que o mundo está cheio de deuses que trabalham em toda a Natureza, e deuses, para os gregos, eram espíritos. Kardec repetiu em outros termos e de maneira mais explícita e minuciosa essa mesma verdade. No mundo humano os Espíritos se encarnam, fazem-se homens para modelá-lo. Cada espírito encarnado trás consigo sua tarefa e a sua responsabilidade individual e intransferível. O que não cumpre o seu dever, fracassa. Não há outra alternativa. O fracasso da maioria dos cristãos resultou na falência quase total do Cristianismo. O que se salvou foi o pouco que alguns fizeram. E a partir desse pouco, dois mil anos depois da pregação do Cristo e do seu exemplo de abnegação total, foi que Kardec partiu para a arrancada espírita. O exemplo da França é uma advertência aos brasileiros. A hipnose materialista absorveu os franceses no imediato e o Espiritismo quase se apagou de todo nos campos arroteados por Kardec, Denis, Flammarion, Delanne e tantos outros. A intensa e comovente batalha de Léon Denis, na França e em toda a Europa, nos congressos espíritas e espiritualistas de fins do século XIX e primeiro quarto do nosso século foi contra as infiltrações de doutrinas estranhas, de espiritualismos rebarbativos, no meio espírita. Foi gigantesco o esforço do famoso Druida da Lorena, como Conan Doyle o chamava, para mostrar que o Espiritismo era uma nova concepção do homem e da vida, que não se podia confundir com as escolas espiritualistas ancestrais, carregadas de superstições e princípios individualmente afirmados ou provindos de tradições longínquas, sem nenhuma base de critério científico. O mesmo acontece hoje entre nós, sob a complacência de instituições representativas da doutrina e o apoio fanático de líderes carismáticos, piegos espirituais e alucinados mentais a dirigir multidões de cegos.

Todas as tentativas de correção dessa situação perigosa se chocam com a frieza irresponsável dos que se dizem responsáveis pelo desenvolvimento doutrinário. E a passividade da mas­sa espírita, anestesiada pelo sonho da salvação pessoal, do valor mágico da tolerância bastarda, da crença ingênua do valor sobrenatural das esmolas pífias (o óbolo da viúva dado por casais de contas comuns nos bancos), vai minando em silêncio o legado de Kardec. O medo do pecado que saí da boca, da pena ou das teclas — enquanto se come e bebe à farta, semeiam-se migalhas aos pobres e dorme-se na bem-aventurança das longas digestões — faz desaparecer do meio espírita o diálogo do passado recente, substituindo o coro dos debates pelo silêncio místico das bocas-de-siri. Ninguém fala para não pecar e peca por não falar, por não espantar pelo menos com um grito as aves daninhas e agoureiras que destroem a seara.

A imprensa espírita, que devia ser uma labareda, é um foco de infestação, semeando as mistificações de Roustaing, Ramatis e outras, ou chovendo no molhado com a repetição cansativa de velhos e surrados slogans, enquanto as terras secas se esterilizam abandonadas. O óbolo da viúva não cai nos cofres do Templo, mas nos desvãos do chão rachado pela secura maior dos corações, como lembrou Constâncio Vigil.

À margem dessa imprensa paroquial, feita para alimentar a família, os jornais que surgem em condições de mostrar ao grande público a grandeza e o esplendor da Doutrina morrem de inanição, enquanto jornais mistificadores, preparados com os condimentos da imprensa sensacionalista e louvaminheira, ou temperados com bocas-de-siri (quanto mais fechadas, mais gostosas) são mantidos pela renda de instituições comerciais ou por interesses marginais.

As escolas espíritas marcam passo na estrada comum. Os programas de rádio são sufocados por adulteradores e substituí­dos por improvisações acomodatícias. A televisão só se abre para sensacionalismos deturpadores. Os recursos financeiros se são empregados na caderneta de poupança da caridade visível, que no invisível rende juros e correções monetárias. As iniciativas editoriais corajosas – como o lançamento de toda a coleção da Revista Espírita (*) – morrem asfixiadas pelo encalhe, ante o desinteresse de um público apático. Os hospitais Espíritas trans­formam-se em organizações comuns, mantidos pelas verbas oficiais de socorro a doentes que podem carreá-las aos seus cofres, a antiga e legítima caridade espírita de anos atrás, sustentada por alguns abnegados que já passaram para o Além, murcha como flor de guanxuma em pastos ressequidos. Restam apenas, nessa paisagem desoladora, alguns pequenos oásis sustentados pelos últimos e pobres abencerragens (**) de uma velha estirpe desaparecida.

É necessário que se diga tudo isso, que se escreva e semeie essa verdade dolorosa, para que toque os corações, na esperança de uma reação que talvez não se verifique, mas que pelo menos se tenta despertar. Na hora decisiva da colheita, as geadas da indiferença e as parasitas do comodismo ameaçam as mínimas esperanças de antigos e cansados lavradores. Apesar disso, os que ainda resistem não podem abandonar os seus postos. É necessário lutar, pois o pouco que se possa salvar poderá ser a garantia de melhores dias. O homem, as gerações humanas morrem no tempo, mas o espírito, não. O tempo é o campo de batalha em que os vencidos tombam para ressuscitar. Quem poderia deter a evolução do espírito no tempo? A consciência humana amadure­ce na temporalidade. A esperança espírita não repousa na fragilidade humana, mas nas potencialidades do espírito, que se atualizam no fogo das experiências existenciais. Curta é a vida, longo é o tempo, e a Verdade intemporal aguarda a todos no impassível Limiar do Eterno. O homem é incoerência e paixão, labareda esquiva que se apaga nas cinzas, mas o espírito é a centelha oculta que nunca se apaga e reacenderá a chama quantas vezes for necessário, para que a serenidade, a coerência e o amor o resgatem na duração dos séculos e dos milênios.

Todas as Civilizações da Terra se desenvolveram, numa assombrosa sucessão de sombra e luz, para que um dia — o Dia do Senhor, de que falavam os antigos hebreus — a Civilização do Espírito se instale no planeta martirizado pelas tropelias da insensatez humana. Então teremos o Novo Céu e a Nova Terra da profecia milenar. Os que não se tornarem dignos da promessa continuarão a esperar e a amadurecer nas estufas dos mundos inferiores, purgando os resíduos da animalidade. Essa é a lei inviolável da Antropologia Espírita.

José Herculano Pires

Fonte: Espiritualidade e Sociedade

(*) Atualmentea coleção da Revista Espírita apresenta grande circulação face ao criterioso valor elucitativo e doutrinário. Conheça esta coleção – endereço eletrônico:
https://www.ipeak.net/site/conteudo.php?id=164&idioma=1

(**) Indivíduos que se mostram de extrema dedicação a uma causa; são os derradeiros paladinos de uma idéia.

Fonte: in O Espírito e o Tempo. 4.ª Parte. A Prática Mediúnica, Cap. III, 7.ª ed. Sobradinho: Edicel, 1995.

Leia também de José Herculano Pires:

seta dupla verde claro direita   100 anos de “O Livro dos Espíritos”
seta dupla verde claro direita   Ação Espírita na Transformação do Mundo
seta dupla verde claro direita   Agonia das Religiões
seta dupla verde claro direita   Analítica de Deus
seta dupla verde claro direita   Arigó: vida, mediunidade e martírio
seta dupla verde claro direita   Biografias e bibliografia
seta dupla verde claro direita   O Centro e a Comunidade

seta dupla verde claro direita   Centro Espírita
seta dupla verde claro direita   O Centro Espírita
seta dupla verde claro direita   Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas
seta dupla verde claro direita   Ciência e Superstição
seta dupla verde claro direita   Conceito de mediunidade
seta dupla verde claro direita   Concepção Existencial de Deus
seta dupla verde claro direita   A Confluência
seta dupla verde claro direita   Conteúdo Resumido das Obras de J. Herculano Pires
seta dupla verde claro direita   Cultura Espírita
seta dupla verde claro direita   A Criação do Homem
seta dupla verde claro direita   Curso Dinâmico de Espiritismo – O Grande Desconhecido
seta dupla verde claro direita   Da Serenidade Humana
seta dupla verde claro direita   Das necessidades das sessões espíritas e das condições para a sua realização
seta dupla verde claro direita   Desenvolvimento do Fenômeno Cristão no sentido da Libertação Espiritual
seta dupla verde claro direita   Desaparece o Sectarismo à medida que se desenvolve o Cristianismo
seta dupla verde claro direita   O Desenvolvimento Científico

seta dupla verde claro direita   A Desfiguração do Cristo
seta dupla verde claro direita   O Despertar da Existência
seta dupla verde claro direita   DEUS

seta dupla verde claro direita   Deus e o Homem
seta dupla verde claro direita   Educação para a Morte
seta dupla verde claro direita   Epistemologia Espírita
seta dupla verde claro direita   O Espírita e o Mundo Atual
seta dupla verde claro direita   Espiritismo Dialético
seta dupla verde claro direita   O Espírito e o Tempo
seta dupla verde claro direita   Evolução Espiritual do Homem – Na perspectiva da Doutrina Espírita
seta dupla verde claro direita   A Falange do Consolador
seta dupla verde claro direita   A Fase Intermediária da Moralidade Subjetiva
seta dupla verde claro direita   A Filosofia do Espírito
seta dupla verde claro direita   Filosofia e Espiritismo

seta dupla verde claro direita   Filosofia viva e racional, sem o espírito de sistema

seta dupla verde claro direita   Formação do Novo Homem
seta dupla verde claro direita   O homem no mundo como ser na existência
seta dupla verde claro direita   O Homem Novo
seta dupla verde claro direita   O Infinito e o Finito
seta dupla verde claro direita   Introdução à Filosofia Espírita
seta dupla verde claro direita   Irrefutáveis as provas da sobrevivência humana
seta dupla verde claro direita   Kardec e a evolução do Espiritismo

seta dupla verde claro direita   Lembrava-se a menina de Delhi de ter vivido antes em Mathura
seta dupla verde claro direita   A Lenda do dilúvio
seta dupla verde claro direita   Mediunidade
seta dupla verde claro direita   O Menino e o Anjo
seta dupla verde claro direita   O Método de Kardec
seta dupla verde claro direita   O Mistério do Bem e do Mal
seta dupla verde claro direita   O Mistério do Ser ante a Dor e a Morte
seta dupla verde claro direita   Motivos de dificuldades nas curas

seta dupla verde claro direita   Na Hora do Testemunho
seta dupla verde claro direita   Nascimento da Educação Espírita
seta dupla verde claro direita   No Limiar do Amanhã – (Lições de Espiritismo)
seta dupla verde claro direita   Obsessão – o Passe – a Doutrinação
seta dupla verde claro direita   O Panpsiquismo e a Unidade Espiritual do Homem
seta dupla verde claro direita   Parapsicologia e Interpretações Pessoais
seta dupla verde claro direita   Parapsicologia Hoje e Amanhã
seta dupla verde claro direita   Pedagogia Espírita
seta dupla verde claro direita   A Pedagogia de Jesus

seta dupla verde claro direita   A Pedra e o Joio
seta dupla verde claro direita   Pesquisa sobre o Amor
seta dupla verde claro direita   O Problema da violência

seta dupla verde claro direita   Que Ciência é essa?

seta dupla verde claro direita   O Reino
seta dupla verde claro direita   Restabelecendo o equilíbrio nas relações corpo-espírito
seta dupla verde claro direita   Resignação Espírita
seta dupla verde claro direita   Revisão do Cristianismo
seta dupla verde claro direita   O Sentido da Vida
seta dupla verde claro direita   Somos os Construtores do Mundo
seta dupla verde claro direita   Os Sonhos de Liberdade
seta dupla verde claro direita   Os Três Caminhos de Hécate
seta dupla verde claro direita   Uma tomada de consciência
seta dupla verde claro direita   Vampirismo
seta dupla verde claro direita   Visão Espírita da Bíblia

José Herculano Pires & Júlio Abreu Filho
seta dupla verde claro direita   O Verbo e a carne

José Herculano Pires, (Irmão Saulo); Maria Dolores; Chico Xavier
seta dupla verde claro direita   A Dor e o Tempo / Elevação

José Herculano Pires; Marcelo Henrique Pereira
seta dupla verde claro direita   A Gnosis Espírita

veja também sobre Herculano Pires:

Mariotti, Humberto & Ramos, Clóvis
seta dupla verde claro direita  Filósofo Herculano Pires e Poeta

Rizzini, Jorge
seta dupla verde claro direita  J. Herculano Pires, o Apóstolo de Kardec – o Homem, a Vida, a Obra
seta dupla verde claro direita  J. Herculano Pires, o fiel tradutor de Kardec

Mollo, Elio
seta dupla verde claro direita  José Herculano Pires – pequena biografia

Esta entrada foi publicada em A Família, Artigos, Ciência, Entrevistas, Espiritismo, Sociedade, Transição. Adicione o link permanente aos seus favoritos.

Deixe um comentário