O erro de Nietzsche

O erro de Nietzsche

Humberto Schubert Coelho

Um dos problemas capitais enfrentados pela filosofia hodierna é o de definir sua própria fase de existência. Afinal, o que significam as divisões em filosofia moderna e contemporânea, tal como se no-las apresentam no quadro didático do magistério? Seria a filosofia contemporânea marcada pela pós-metafísica, ou pós-modernidade; mas nesse caso, o que exatamente resta de filosófico na filosofia, se ela assumidamente renuncia ao esforço de remontar às causas últimas e sintetizar o real numa fórmula compreensível?

É tão precária a divisão da filosofia em etapas que os especialistas discutem ainda seriamente onde começa e termina a Era Moderna. Certamente a Modernidade cultural se inicia no século XVII com Bruno, Descartes, Bacon, Galileu, Copérnico (a recepção dele, pois a pessoa viveu antes) e Kepler, ou melhor dizendo, com a revolução científica, que acompanhou também o processo estético-cultural de formação das línguas nacionais. Bem mais difícil é saber se a filosofia acompanhou imediatamente esta revolução, ou se, como pensam alguns, permaneceu escolástica e subordinada à teologia até Hume e Kant, mais de um século depois. E isto é essencial para definir de quem a filosofia contemporânea quer se diferenciar.

Na visão mais ortodoxa a modernidade filosófica se enquadra entre Descartes e Hegel, aproximadamente, período marcado pela metafísica da subjetividade. Cum grano salis, os pensadores deste período compartilham o ponto de vista subjetivo da fundamentação do saber e do ser, terminando por identificar a ambos. A partir do positivismo, do marxismo, da psicanálise e, com mais propriedade filosófica e profundidade, de Nietzsche, inicia-se o processo de crítica antropológica da metafísica moderna, substituindo-se as certezas metafísicas por explicações sociais, econômicas, linguísticas, psicológicas, etc. Se com Comte e Marx a filosofia foi “substituída” pela “ciência” social – ou, mais corretamente, um primeiro esboço dela -, ocorrendo o mesmo em relação a Freud, com Nietzsche vemos a implosão da filosofia a partir de sua própria autoanálise, ainda que com forte comprometimento do reducionismo antropológico. Nietzsche decretou o erro de Descartes como sendo a absolutização do sujeito em uma forma pura, imaterial, e extramundana, e a metafísica que se lhe seguiu nada mais seria do que uma insistência nessa elevação esquizofrênica da subjetividade ao estado divino, puro.

Tal diagnóstico se cercou não apenas de toda a vasta crítica antropológica disponível, como da análise do próprio Nietzsche sobre os processos de abafamento cultural empreendidos pela tradição cristã. Com sua invulgar erudição, Nietzsche discerniu perfeitamente os movimentos da arte, da religião e da ciência na Antiguidade clássica e em sua mutação no ideal ascético estóico-cristão, vendo nisso um processo de decadência, o que não é de todo incorreto.

Nesse particular a afirmação cartesiana de um purismo da subjetividade soou-lhe como retrocesso ou continuação acrítica do pensar medieval, pelo que a condenou duramente. Nietzsche viu em Descartes a desumana separação entre espírito e corpo, entre intelecto e vida, entre sujeito e mundo, reivindicando um retorno à vitalidade de uma filosofia comprometida com esta existência, a concreta. Segundo o célebre teocida, ao contrário de uma alma matemática, puramente abstrata e em oposição ao corpo, era preciso resgatar o ideal heroico grego de uma alma dotada de paixões, de pulsões vitais, de amor pelo corpo e pelo mundo. O espírito para Nietzsche é o regulador da saúde humana, a sensibilidade absolutamente encarnada que frui ao máximo a dor e a alegria, a beleza e a tragédia da existência. Por isso mata ele o Deus arquiteto, o puro intelecto, em prol de um retorno dos deuses gregos da música e da dança, do sorriso e da lágrima, deuses, enfim, que afirmem a vida humana, ao invés de a negar.

A belíssima contribuição de Nietzsche à reavaliação dos erros do cristianismo cultural convive, entretanto, com um erro capital, a saber, o de malbaratar a compreensão correta da subjetividade cartesiana e, por consequência, de toda a metafísica moderna. Enquanto Nietzsche e seus parceiros, os sociólogos e psicólogos reducionistas, viam na metafísica da subjetividade um mero rearranjo das concepções escolásticas e platônicas, a crítica mais moderna resgata já em Platão e especialmente na metafísica moderna o sentido preciso da subjetividade, não como elemento isolado, mas região distanciada ou profunda da vida mental.

O que incomodava aos críticos do século XIX e XX era naturalmente a concepção de imortalidade da alma e a sua oposição ao corpo, bem como a consequência ética de que a vida não se justificava na existência atual, mas somente em referência a uma outra. Ora, os sociólogos queriam esgotar o drama da existência na realidade socioeconômica atual, o mesmo valendo para a psicologia em seu campo de ação. O que a nova visão da metafísica demonstra, no entanto, é que esse medo materialista não tem razão de ser diante da visão mais completa e acabada da subjetividade, visão esta que estava implícita em toda a tradição metafísica.

A crença na imortalidade da alma, ou sua defesa racional, não é mais do que um momento secundário da percepção compartilhada pelo materialismo de que há uma esfera subjetiva irredutível aos processos explicativos da realidade material. O que mesmo o naturalismo mais duro dos dias de hoje admite, uma “certa dificuldade” de reduzir o subjetivo ao fisiológico, é a atestação empírica de que há uma duplicidade ontológica radical, talvez intransponível. É com base nessa percepção universal que metafísicos desde Pitágoras afirmaram a possibilidade, quando não a certeza da imortalidade, já que a constituição da subjetividade é, aos olhos de todos, distinta da constituição transitória e puramente formal da matéria. Uma vez que o sujeito não está sujeito à causalidade mecânica, identificando intuitivamente em si o livre-arbítrio, não tem o seu ser determinado pela sua forma, sentindo-se essencialmente como sensível, intencional e referencial, conclui-se tão somente quanto a sua não sujeição às regras do corpo, como o ser perecível.

Mas enquanto esta conclusão tem força de prova para o racionalismo, de diversos tipos, é bem verdade que isto não basta para concluir favoravelmente a sua existência de fato. Nisso religiosos e materialistas estão errados. Há um argumento racional e imbatível em favor da existência da alma, e isto têm de reconhecer os materialistas, mas esse argumento pode ser puramente válido no âmbito especulativo, sem que se constate sua vigência na realidade, e isto têm de reconhecer os religiosos.

A solução ortodoxa da religião foi pressupor, pela fé, um bom Deus que garante o acerto de nossos juízos. A solução espírita foi buscar uma base empírica para a sugestão puramente especulativa de imortalidade. Em ambos os casos o materialista pode reagir: negando-se a depositar fé no bom Deus, ou questionando a força das evidências empíricas apresentadas pelo Espiritismo e pela pesquisa psíquica em geral.

O que o materialista não pode fazer, contudo, é confundir o recurso do religioso ao argumento de fé ou a uma convicção empírica na veracidade do argumento da imortalidade com uma crença ingênua e/ou psicológica na sua imortalidade pessoal. Foi precisamente o que Nietzsche fez em relação a Descartes. Tal como Marx, Freud e outros pensadores antropológicos, reduziu o argumento filosófico à condição de crítica externa, depositando não apenas a razão do dualismo cartesiano em motivos culturais e psicológicos, como ignorando a fonte empírica, inteiramente não cultural e não psicológica da dupla constituição do ser.

(Publicado em 05/mai/2023)

Autor: Humberto Schubert Coelho

Fonte: espiritismo.net

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