ESPIRITISMO, ÉTICA E CONHECIMENTO
Luiz Signates
Resumo: Resposta à pergunta enviada por Carlos Alberto Iglesia Bernardo sobre hierarquia, comunicação e ética nas relações de poder dentro do movimento espírita.
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Sempre ouvimos que o Espiritismo não tem uma autoridade central, não tem hierarquias estruturadas, mesmo os Grupos Espíritas são associações formadas livremente por seus participantes. A definição do que é “Espírita” ou “não é Espírita” vem do consenso dos Espíritas, sua conformidade com os princípios estabelecidos por Kardec na Codificação Espírita e da uniformidade dos ensinamentos transmitidos pelos Espíritos. Informações lançadas por Espíritos ou grupos isolados são hipóteses ou opiniões pessoais até que o consenso se estabeleça a respeito.
Contudo tenho dificuldades, e já reparei não ser o único, de entender como isso funciona – ou deveria funcionar na prática. Consigo ver que a comunicação (principalmente a escrita) desempenha um papel importante na manutenção da unidade do movimento espírita – evitando que ele se decomponha em uma infinidade de “seitas”, mas não consigo visualizar as regras dessa comunicação. O consenso é uma realidade prática ou uma utopia? A comunicação continuará funcionando bem dentro de uma comunidade Espírita cada vez maior? Não corremos o risco de alguns poucos grupos espíritas melhor estruturados absorverem a função de definir o que é Espirita e o que não é (dando nascimento a hierarquias e poderes religiosos)? – Carlos Alberto Iglesia Bernardo Acho que a discussão a respeito do consenso ultrapassa o interesse demarcatório, que é onde se encontra a idéia da pureza doutrinária e da fidelidade a Kardec, não raro fundante de mecanismos de exclusão em nosso meio. Allan Kardec postulava o consenso intersubjetivo interexistencial como critério epistemológico, isto é, como critério de verdade. Gilberto Guarino, contudo, enfatiza com razão os problemas metodológicos desse critério, pois sua aplicabilidade é muito difícil, senão impraticável.
A saída que tenho pensado a respeito é observar o consenso a partir de uma perspectiva ética, buscando uma solução em que conhecimento e fraternidade se unam como uma ética da construção do saber espírita. O que significa isso, na prática? Significa que a idéia de consenso intersubjetivo se estabelece como vínculo de fraternidade em busca de um conhecimento conjunto. A razão, contudo, nesse caso, não é a da conformidade com conteúdos, e sim a dos princípios de relacionamento. Em lugar do interesse demarcatório (definição sociocultural do que é e do que não é espírita, para fazer emergir um suposto “Espiritismo puro”, sem as influências afro ou orientais, por exemplo), a idéia é a de buscarmos a construção pragmática da fraternidade vivida, justamente pela aceitação da diversidade e o relacionamento pacífico entre as diferenças e, somente a partir daí, tornarmos válida nossa busca por conhecimento. Tal idéia não procede de mim: é de Jesus Cristo, quando afirmou, peremptoriamente:
“Os meus discípulos serão conhecidos por muito se amarem”, pontuando que “quem não é contra mim, é por mim”.
Os postulados fundamentais dessa proposta são, primeiro, o de que “é espírita todo tipo de procedimento que esteja em conformidade com a ética de Jesus Cristo” e, segundo, o de que “somente dentro de tal ética de procedimento, poderemos construir o Espiritismo como conhecimento válido”. Os critérios demarcatórios, entretanto, têm trabalhado pelo inverso: primeiro define-se o Espiritismo a partir de um conjunto de ideias até certo ponto dogmatizadas e, somente depois, é que se erige uma relação de fraternidade, não raro condicionada à aceitação daquele conjunto de ideias. Por isso se briga tanto no movimento espírita em torno de questões que, no fundo, não têm importância alguma, como o corpo fluídico de Jesus ou a reencarnação de Allan Kardec… Tal como nos negros períodos da história do cristianismo, embora sem os mesmos mecanismos de violência, passamos a justificar novos tipos de guerra santa, desta vez em defesa da verdade e da pureza doutrinárias, rompendo constantemente com a fraternidade em seu nome.
Segundo minha humilde forma de pensar, o que expressa o Espiritismo – e, por conseguinte, aquilo que define o espírita – são justamente as formas fraternas de vida que esse conhecimento desencadeia, e não um sistema de crenças que, no caso do Espiritismo, arrisca-se às vezes a erigir determinados supostos do positivismo e do racionalismo francês do século passado como verdades insofismáveis. E, para isso, como você muito bem pontua, erigem-se sistemas institucionalizados de poder com o privilégio de definir o que é e o que não é espírita, sistemas esses que passarão a disputar entre si a hegemonia de tais definições. Desencadeado o processo de disputa de poder, perde-se o essencial da ética cristã e, uma vez mais, Jesus Cristo volta para as ruas, a fim de começar de novo a construção do amor no mundo, do ponto onde ela parou…
Tal é o motivo pelo qual tenho por mim que nossa missão não é a de converter as pessoas para as coisas que pensamos, mas de estabelecer com elas uma relação de fraternidade autêntica.
A proposta do Espiritismo, penso eu, é fundar no mundo a sociedade das pessoas que se amam – e o amor só é possível na diversidade. Antes da relação de conhecimento (o “instruí-vos”) está a relação de fraternidade (o “amai-vos”), sendo que aquela somente é espiritamente válida se for fundada nesta. O movimento espírita, portanto, para ser espírita de fato, denomine-se ou não desta forma, é aquele que relativiza as pretensões de conhecimento e funda o diálogo fraterno entre elas. Esse argumento, inclusive, tem base kardequiana: o Espiritismo foi pensado pelo codificador como progressivo; ora, o progresso do conhecimento espírita (que se daria pela revelação dos espíritos em constante confronto com os métodos e postulados da ciência de cada época) só é possível em regime de diálogo cognitivo, e jamais pela fundação de um conjunto de conteúdos tidos por inamovíveis.
Nesse sentido, e para não cairmos no relativismo moral, define-se a busca espírita do conhecimento pela sua ética, esta sim, consensualizada e consensualista por natureza: a ética da fraternidade, a partir da qual os conhecimentos humanos relativos a respeito das coisas espirituais encontrariam sempre um caldo de cultura onde pudessem mostrar suas diferenças sem se estranharem e, sobretudo, sem o soerguimento de muros de preconceito e autoritarismo, dispensando, portanto, os movimentos de exclusão que vêm se tornando tão comuns entre nós.
Luiz Signates
Fonte: Espiritualidade e Sociedade