Conversa com os espíritos: na teoria e na prática com Kardec

Conversa com os espíritos: na teoria e na prática com Kardec

Izabel Vitusso

CONVERSA COM OS ESPÍRITOS: NA TEORIA E NA PRÁTICA COM KARDEC

Neste ano, em janeiro, O livro dos médiuns completou 160 anos, lançado por Allan Kardec, em Paris, como complemento de O livro dos espíritos. Segunda obra da codificação espírita, seu conteúdo está voltado ao ensino dos espíritos sobre a teoria e a parte experimental de todos os gêneros de manifestações, os meios de comunicação com o mundo invisível, o desenvolvimento da mediunidade, as dificuldades e os escolhos que se podem encontrar na prática do espiritismo.

Kardec se referiu à obra como um “repositório de instrução prática”, alertando não se destinar exclusivamente aos médiuns, mas a todos os que estivessem em condições de ver e observar os fenômenos espíritas.

O codificador não cansou de chamar a atenção para o fato de a prática do espiritismo ser um ‘campo vasto’, rodeada de dificuldades, nem sempre isenta de inconvenientes a que só o estudo comprometido e completo poderia auxiliar, não se admitindo experiências levianas ou divertimento. “Dirigimo-nos aos que veem no espiritismo um objetivo sério, que lhe compreendem toda a gravidade e não fazem das comunicações com o mundo invisível um passatempo”, advertiu.

Passados 160 anos e o alerta continua fundamental, uma lição inesquecível, como um código de conduta para quem tem compromisso com o trabalho da divulgação do espiritismo, considerando a interação com os espíritos e a responsabilidade na análise e na publicação do material que deles possa vir, em nome da propagação correta da doutrina espírita.

Expansão da literatura

Pelo crivo da razão é que passaram as incontáveis obras que enriqueceram as bases do espiritismo e auxiliaram no maior entendimento da nova realidade trazida pelos espíritos. Muitos deles, clássicos escritores, como Léon Denis, Gabriel Delanne, Ernesto Bozzano, Camille Flammarion, Albert de Rochas, Amália Domingos Soler, Cesare Lombroso, Gustave Geley, para citar muito poucos, deixaram sua marca na literatura que se seguiu às obras da codificação.

Já no Brasil, nas primeiras décadas do século 20, a produção literária espírita contou com o grande apoio das obras psicografadas, que revelaram nomes de médiuns, como Zilda Gama, Dolores Bacelar, Yvonne do Amaral Pereira, Divaldo Franco, tendo o médium Francisco Cândido Xavier, nesse período, dado grande contribuição, com o legado de mais de 400 obras ditadas pelos espíritos, em grande parte romances históricos, crônicas, coleção de estudos e reflexões sobre mensagens do Evangelho.

Ampliando o diálogo

Numa dessas publicações, de 1941, Chico Xavier psicografa uma obra até então genuína, com respostas de Emmanuel sobre temas propostos, ideia acatada pelo espírito numa das reuniões do Grupo Espírita Luiz Gonzaga, em Pedro Leopoldo, MG, quando os participantes buscavam ampliar o entendimento sobre os três aspectos do espiritismo.

A obra, O consolador1, tornou-se uma das referências na literatura espírita, com mais de 400 perguntas sobre temas doutrinários. Antes de respondê-las, o mentor espiritual precaveu o grupo de que não seria dele a última palavra sobre os assuntos, e com modéstia colocava-se à disposição para cooperar da melhor forma. Também esclareceu Emmanuel que não se deteria em exames técnicos de questões científicas, ou no objeto das polêmicas da filosofia e das religiões, intensamente movimentados “nos bastidores da opinião”.

Sobre o fato de se inquirir os espíritos, Allan Kardec elucida em O livro dos médiuns (questões 286 a 296) que é preciso se ter um fim útil para o intercâmbio e que se deve atentar sempre para “a forma e o fundo”, devendo as perguntas ser redigidas com clareza e precisão, evitando-se questões complexas. Lembrou sabiamente que “é a natureza da pergunta que provoca uma resposta correta ou falsa”.

O codificador também disse que as perguntas, longe de serem um inconveniente, são de grande utilidade, do ponto de vista da instrução, “quando se sabe encerrá-las nos limites desejados”.

Saber questionar

Sobre o fato de se organizar em forma de perguntas uma interação mais direta com os espíritos, a Sociedade Espírita Primavera, de Juiz de Fora, MG, lançou em 2019 um livro – Diálogos espíritas – fruto de um trabalho semelhante ao citado e que teve início através do contato em reuniões espíritas, por muito tempo, com o espírito Ivon. Ele se revelou, durante o extenso convívio, um grande defensor dos princípios filosóficos espíritas, e um expressivo trabalhador, na instrução e no amadurecimento dos grupos em que se fazia presente.

O grupo, que tem à frente os organizadores Daniel Salomão, Humberto Schubert Coelho e o médium Vinícius Lara – todos com sólido conhecimento, vivência doutrinária e apurada formação acadêmica –, propôs à entidade questões e problemas atuais da reflexão espírita, como o rumo do próprio movimento espírita, os embates ideológicos e culturais, a mediunidade aplicada ao trabalho em suas mais amplas acepções, temas filosóficos sobre os postulados espíritas à luz da atualidade, e tantos outros, cuidadosamente pensados e apresentados, seguindo a orientação de que fossem bem trabalhadas, pouco ambíguas e compatíveis com a experiência e competência individuais do espírito.

Leitura crítica

Conscientes da tarefa e com o senso crítico apurado, ao disponibilizar o resultado do trabalho de anos em formato de livro, o grupo faz o convite para que o leitor também exercite a recomendação de uma leitura criteriosa, com o uso do bom senso e da atenção ao ‘método do controle universal do ensino dos espíritos’, que coloca toda informação frente a frente com o conhecimento já consolidado.

Ao falar sobre a necessidade da leitura crítica de qualquer obra, Daniel Salomão lembra também que, se por um lado há os que aceitam indiscriminadamente tudo o que é admitido como mediúnico, há no outro extremo os que rejeitam todo trabalho psicográfico. “Para alguns, tudo estaria pronto em Kardec”, ressalta o pesquisador, complementando ser esse pensamento contrário à proposta do codificador, que nunca se colocou como único apto, nem pretendeu ter em sua obra o esgotamento do assunto.

Salienta também que não há como haver ‘controle universal do ensino dos espíritos’ se textos e possíveis ensinos não forem publicados!

“Não é possível encontrar concordância em mensagens que não são lidas e divulgadas responsavelmente. Não devemos temer a mediunidade nos dias de hoje, pois nunca tivemos tanto à disposição para acolhê-la com segurança”, conclui.

Algumas abordagens do livro

Poder-se-ia dirigir mais frequentemente questões de caráter científico e problemático aos espíritos de modo ainda mais específico do que se tem praticado?

Compreendemos que o desenvolvimento da ciência humana é atribuição dos encarnados, pois que se ancora ao tempo e ao espaço em que se desenvolve, não cabendo aos desencarnados maiores intervenções do que a sugestão intuitiva daquilo que poderia ser mais útil neste ou naquele campo de saber, em relação com o amadurecimento coletivo das populações. Foi assim inclusive, que grandes projetos artísticos e científicos se desenvolveram ao longo da história, mas sempre reservando aos homens a função de protagonistas na evolução do planeta.

De que forma devemos aplicar hoje o princípio do ‘controle universal do ensino dos espíritos’?

Exatamente da mesma maneira que Allan Kardec, Léon Denis e outros pioneiros do espiritismo o faziam. Inicialmente, entre as atividades mediúnicas da própria instituição, para, em seguida, através do contato salutar com as demais agremiações irmãs, expandir o controle das informações espíritas às raias do que chamamos movimento organizado. Para tanto, todavia, cumpre que a mediunidade seja encarada novamente como parte do corpo de práticas e pesquisas, saindo do campo do tabu religioso e adentrando novamente no espaço da ciência natural de consequências morais.

Estando a lei moral escrita na consciência, é da falta de meditação ou da malícia que decorrem os erros dos homens?

Os erros decorrem da inércia reencarnatória. Por séculos a mente acumula camadas e mais camadas de hábitos iludidos ao longo das encarnações sucessivas. O ego, que deve ser entendido enquanto estrutura mental consolidada, aprendeu no tempo quais os meios mais eficazes para supostamente fugir do sofrimento, sendo esta a origem das especificidades psicológicas e psíquicas assumidas por cada indivíduo, em busca da manutenção de sua visão de mundo. Diálogos espíritas, org. Daniel Salomão e Humberto Schubert Coelho, Editora Sociedade Espírita Primeira, 2019.

Controle universal do ensino dos espíritos

Estava nos planos superiores a nova revelação chegar aos homens por um meio mais rápido e autêntico. Eis porque os espíritos manifestaram-se por toda parte, sem dar a ninguém a exclusividade de ouvir a sua palavra, porque um homem poderia ser enganado, mas não aconteceria assim se milhões deles ouvissem a mesma coisa, o que é uma garantia para cada um e para todos. Os espíritos, comunicando-se por toda parte, seriam aceitos por todos, sem nacionalidade exclusiva e independe de todos os cultos particulares. Esta universalidade do ensino dos espíritos faz a força do espiritismo e também encerra uma garantia contra dissidências que poderiam ser suscitadas, quer pela ambição de alguns, quer pelas contradições de certos espíritos. (Baseado na introdução de O evangelho segundo o espiritismo.)

Izabel Vitusso

Fonte: Correio.News

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