Diante do mal, o bem é a meta
Jorge Hessen
Antes de expormos algumas ponderações doutrinárias acerca do mal e do bem, é interessante sabermos os seus significados. Filosoficamente, a primeira (mal) define-se como privação ou imperfeição, ou aquilo que é nocivo, prejudicial, que se opõe ao bem, à virtude, à probidade, à honra. No que reporta ao bem, são atribuídas ações e obras humanas que lhes conferem um caráter moral. (1) E para não incorrer no maniqueísmo (2) inócuo, consignamos que “a evolução para Deus pode ser comparada a uma viagem divina. O bem constitui sinal de passagem livre aos cimos da Vida Superior, enquanto o mal significa sentença de interdição, constrangendo-nos a paradas mais ou menos difíceis de reajuste”. (3)
A maldade dos homens sempre inquietou os pensadores dos mais diversos campos do saber e da ação humana: filosofia, ciência, arte, religião, a exemplo de Hanna Arendt, filósofa judia, que estudou as questões do mal e suas teses estão ínsitas no livro Eichmann em Jerusalém, que analisa o julgamento do verdugo nazista, mentor da morte de milhares de pessoas. Tendo como referencial o caso Eichmann, Hanna Arendt justifica que o mal pode tornar-se banal e difundir-se pela sociedade como um fungo, porém apenas em sua superfície. Para ela, as raízes do mal não estão definitivamente instaladas no coração do homem e, por não conseguirem penetrá-lo profundamente a ponto de fazer nele morada, podem ser extirpadas.
Para muitos, o mal seria mais forte que o Bem, e que os Espíritos do mal estariam conseguindo derrotar os Benfeitores espirituais, frustrando-lhes os desígnios superiores. Em que pese a antiga tradição de tais conceitos, são insustentáveis e falsos, diríamos mesmo, absurdos. Admitir o triunfo do maligno, a prejuízo da humanidade, é o mesmo que negar ao Senhor da Vida os atributos da onisciência e da onipotência, sem os quais não poderia ser verdadeiramente Deus.
O mal não é criação do Todo-Poderoso como imaginam algumas pessoas, especialmente aquelas que vivem distanciadas do entendimento evangélico. O mal é transitório, não tem raízes; o bem é permanente. O mal definha à medida que o bem se estabelece. Foi por isso que Jesus dizia que o Reino dos Céus começa em nosso coração e compara-o ao fermento que transforma e engrandece a massa; o Reino dos Céus é como a semente de mostarda cuja árvore é múltipla em benefícios.
A humanidade vem nos últimos anos passando por transformações preocupantes. A influência da matéria sobre a vida social cresce incessantemente. Os valores morais estão sendo corrompidos com espantosa velocidade. Nunca o mundo precisou tanto dos ensinos espíritas como nestes tempos atuais.
Vivenciamos instantes em que se aguça o individualismo, enodoando o tecido social, e nos vendavais da tecnologia somos remetidos aos acirramentos das desigualdades e isolamentos, estabelecendo-se níveis de conforto e exclusão sociais nunca antes experimentados. Atualmente, consegue-se a compra pela Internet, assiste-se ao filme no shopping, trafega-se pelas avenidas em veículos luxuosos. Vive-se sem convivência fraterna, numa doentia soledade a despeito de um mundo superpovoado de encarnados. Em que pese para os mais otimistas a convicção do alvorecer da Nova Era espiritual que vem chegando, ocupando espaço, no contexto dos avanços da ciência que impulsiona a massa humana para a conquista da paz. E ante os paradoxos acredita-se na existência do elo entre a fé e a razão, entre a ciência e a religião, entre verdade física e verdade metafísica, em que o instinto cede em face da razão, e a sábia consciência direciona os sentimentos sublimes de amor, justiça e caridade.
Mas não há como se desconhecer a luta pela subsistência. São as enfermidades. As insatisfações. Os conflitos emocionais. Os desenganos. As imperfeições próprias daqueles com os quais convivemos. Enfim, as mil e uma vicissitudes da existência. Nesse autêntico amálgama, usando e abusando do livre arbítrio, cada qual vai colhendo vitórias ou amargando derrotas, segundo o grau de experiência conquistada. Uns riem hoje, para chorarem amanhã, e outros que agora se exaltam, serão humilhados depois.
Devemos interrogar a própria consciência, passando em revista os atos cotidianos, para a identificação dos desvios dos deveres que deveriam ter sido cumpridos e dos motivos alheios de queixa por conta dos nossos atos. Revisemos periodicamente nossas quedas e deslizes no campo moral, ativando a memória para nos lembrarmos dos tantos espinhos que já trazemos cravados na “carne do espírito”(4), tal como ensina Paulo de Tarso. Estes espinhos nos lembrarão a nossa condição de enfermos em estágio de longa recuperação, necessitados de cautela. O mal não é invencível, pelo contrário. O homem possui na sua natureza a flama do bem. Somente quando se distancia da sua origem divina é que se compraz com o mal. Para se livrar das ações negativas dos malfeitores espirituais, basta sintonizar-se com seu lado superior, buscando fazer o bem aos outros: em pensamentos, palavras e ações. E, claro, não se deve transferir a responsabilidade dos próprios erros à intervenção do verdugo do Além, que só exerce a sua influência porque encontra campo fértil para isso.
Allan Kardec registra em Obras Póstumas: “Deus não criou o mal; foi o homem que o produziu pelo abuso que fez dos dons de Deus, em virtude de seu livre-arbítrio. (6)” Não é simples, porém, nos livrarmos do mal que praticamos. Mal que nasce em nós, nos impregna e temporariamente passa a fazer parte de nossa personalidade. Paulo de Tarso na sua carta aos romanos tece comentários sobre as lutas que se deve travar para combater o mal em nós mesmos, em frase já célebre: “Porque não faço o bem que quero, mas, o mal que não quero, esse faço”(6). O mal a que se refere Paulo em suas epístolas é o mal trivial que subsiste em nós e é alimentado por nossa vontade. E que, em certa medida, nos proporciona prazer pelo torpor de consciência. Daí a nossa dificuldade de nos desembaraçarmos dele.
Diante da banalização do mal, conforme anota Arendt, que se espalha pelo mundo dos homens, resta-nos individual e coletivamente nos lançarmos ao bom combate, conforme o Apóstolo dos gentios (7), que é constante, exigindo-nos disciplina e perseverança. E uma das questões cruciais que funciona como um divisor de águas da Doutrina Espírita em relação a outras religiões é a necessidade de se praticar o bem para o crescimento espiritual.
O Espírito encarnado ou não, é um ser inteligente, desta forma, o bem para ser bem, para ter eficácia, não prescinde de um conteúdo pedagógico cujo fundamento está justamente no por que fazer o bem. O homem tem recursos de distinguir por si mesmo o que é bem do que é mal, quando crê em Deus e o quer saber. Deus lhe deu racionalidade para distinguir um do outro. Mas, urge meditarmos que o bem não nos imunizará do sofrimento, resolvendo todos os problemas, mas ajudar-nos-á a arrostar os momentos cruciais com ânimo robusto, evitando que nos cristalizemos no pessimismo e oferecendo-nos resistência para vencer dificuldades e não contrair novos compromissos morais negativos.
Joanna de Ângelis induz-nos a lembrar para nunca desistirmos de fazer o bem, face do aparente triunfo do mal em desgoverno, em torno de nossas vidas. Passada a tempestade, a luz volta a fulgir. A sombra é somente ausência da claridade. Não é real. Só Deus é Vida; somente o Bem é meta. (8)
Para que possamos vislumbrar um mundo sem angústias e nem problemas sociais, livres das misérias econômicas e políticas, apelemos para o amor incondicional, que possui os recursos eficazes para a conciliação, o perdão, a transformação moral, fomentando o bem para o progresso, o que concorre para enriquecer nossa sensibilidade, aprimorar nosso caráter, fazer que se nos desabrochem novas faculdades, o que vale dizer, se dilatem nossos gozos e aumente nossa felicidade. (9)
Jorge Hessen
Fonte: O Consolador
Referências:
(1) Esta qualidade se anuncia através de fatores subjetivos (o sentimento de aprovação, o sentimento de dever) que levam à busca e à definição de um fundamento que os possa explicar.
(2) Filos. Doutrina do persa Mani ou Manes (séc. III), sobre a qual se criou uma seita religiosa que teve adeptos na Índia, China, África, Itália e S. da Espanha, e segundo a qual o Universo foi criado e é dominado por dois princípios antagônicos e irredutíveis: Deus ou o bem absoluto, e o mal absoluto ou o Diabo. 2. P. ext. Doutrina que se funda em princípios opostos, bem e mal.
(3) Xavier, Francisco Cândido. Ação e Reação, ditado pelo Espírito André Luiz, RJ: Ed FEB, 2001, cap. 19.
(4) 2ª Epístola De S. Paulo aos Coríntios: 7 – E, para que não me exaltasse pela excelência das revelações, foi-me dado um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás para me esbofetear, a fim de não me exaltar.
(5) Kardec, Allan. Obras Póstumas. RJ: Ed. FEB, 1999.
(6) Romanos 7:19.
(7) (2 Tm 4,7) “Combati o bom combate, percorri o caminho e guardei a fé”.
(8) Franco, Divaldo Pereira. Da obra: Momentos Enriquecedores. Ditado pelo Espírito Joanna de Ângelis. Salvador, BA: LEAL, 1994.
(9) Fonte: Reformador (Janeiro, 1966), in: O Problema do Mal, de Rodolfo Calligaris.