Décio Iandoli Júnior
Segundo o dicionário, culpa é:
“Falta voluntária a uma obrigação, ou a um princípio ético”
Não vamos nos deter aqui aos aspectos jurídicos que o termo possa vir a ter, vamos analisar apenas esta abordagem que nos remete de maneira mais clara ao cerne da questão à qual pretendemos analisar.
No dicionário responsabilidade é:
“Qualidade ou condição de responsável”
E responsável é:
“Que dá lugar a, que é causa de (algo)
Creio que fica bastante claro, como ponto de partida, a diferença entre culpa e responsabilidade, diferença que se estabelece no momento em que inserimos a idéia de consciência, por isso grifamos a palavra “voluntária” na definição do dicionário.
A diferença que parece bastante simples segundo uma visão mais etimológica dos termos, se confunde e perde a nitidez de seus limites quando passamos a aplicá-las em nosso cotidiano.
Acredito ser bastante significativa a expressão muito utilizada pelos cristãos, de maneira geral, que diz: “Tenho temor a Deus”.
A palavra temor significa ato ou efeito de temer, ter medo, receio diante de uma ameaça, pois bem, seria Deus causa de medo, seria Deus uma ameaça?
Esta expressão acabou por significar também respeito ou zelo, mas é na sua origem o mesmo que ter medo, medo do poder supremo de um deus vingativo e implacável diante dos erros cometidos, confundindo justiça com intolerância, é a herança da culpa judaico-cristã que trazemos atavicamente.
Os grandes vultos no cristianismo nascente foram quase todos mártires, dando a idéia de que só se pode conquistar o “reino dos céus” com o sacrifício extremo e a abnegação absoluta.
Os tempos são outros, os espíritos também.
Toco neste assunto por acreditar ser ele de fundamental importância na compreensão do que considero a mais importante de todas as mensagens do Cristo, ou seja, somos responsáveis por nossos atos e pensamentos, somos responsáveis por nossas vidas, nossas felicidades ou infelicidades, mas nem sempre, somos culpados por nossos erros ou pelas conseqüências funestas que nossos atos possam ter, acusando aqui como limite de uma coisa e de outra, o grau de consciência que temos quando atuamos em nossas vidas e quando notamos a repercussão daquilo que falamos ou fazemos.
As leis naturais, universais ou divinas – chame como quiser – atribuem a cada um, na medida de sua evolução e desenvolvimento de seu livre arbítrio, a responsabilidade de seus atos enquanto nós dirigimos nossas atitudes, mais verdadeiramente quanto maior for nossa consciência daquilo que se passa ao nosso redor. Entretanto, estamos suscetíveis às conseqüências de nossas ações, que vão nos mostrando por tentativa e erro, os caminhos que escolhemos no exercício daquilo que podemos chamar livre arbítrio, visto que, não raro, aquilo que “decidimos” é muito mais a ação do meio sobre nós do que propriamente uma escolha.
Invariavelmente, o erro nos remete à responsabilidade que tivemos, já que nos reconhecemos como causa, porém vem de arrebate a culpa que nos martiriza.
Começamos aqui a entrar no ponto principal da questão, pois a culpa só poderia ser atribuída àquele que tinha plena consciência do erro em curso, assim como das conseqüências dele, e é tanto menor quanto menor for a vontade de prejudicar, de causar dano.
A falta de culpa não exime ninguém das conseqüências que causa, mas a culpa tolhe suas possibilidades de recuperação na medida em que provoca a auto-condenação e leva ao martírio que não produz efeito benéfico nem a ele, autor da ação, tampouco àquele ou àqueles que sofreram o dano, assim, a percepção do erro posterior ao seu cometimento, deve provocar sim, a conscientização seguida da ação de reparo que se possa ter, e da prevenção da recidiva que possa ocorrer.
O complexo de culpa é que nos condena ao sofrimento inútil, que nos paralisa diante da vida e das pessoas, que nos amedronta diante das novas possibilidades, engessando nossa vida e desativando todo o cabedal de virtudes que possuímos e que poderiam estar trabalhando a nosso favor e a favor dos que nos cercam.
A responsabilidade faz evoluir, a culpa faz sofrer, por isso é que acredito que a necessidade de desenvolver nossa capacidade de perdoar o outro, tem muito a ver com o auto-perdão evitando o complexo de culpa.
Acredito que perdoar o outro é mais fácil do que perdoar-se, sendo assim, o exercício do perdão ao outro alarga nossa tolerância e nossa compreensão, diminuindo nosso sentimento de culpa diante dos erros diagnosticados no outro e, conseqüentemente, em nós mesmos.
A percepção de nossa falibilidade é que nos dá as ferramentas para desenvolvermos a capacidade de perdoar, o que eu colocaria como sendo a capacidade de eximir de culpa, mas não de responsabilidade.
Evitar as conseqüências de nossos erros não é didático e não produz evolução; tal qual a culpa paralisante não é desejável.
O entendimento das causas do erro alheio leva à percepção da falta de culpa e nos estimula ao entendimento da nossa própria, facilitando sua dissipação, e aqui, cito o questionamento de Tolstoy que, acredito, traduza de maneira cristalina o que tento demonstrar:
“Onde está o livro da lei mais claro para o homem do que aquele que está escrito em seu coração?”
Escrita essa que vamos aperfeiçoando a cada experiência, boa ou má, a cada vivência que nos acrescenta recursos para ver com clareza a realidade que rege nossas vidas e relações.
Vou utilizar aqui um exemplo que considero fundamental.
Na condenação que fazemos ao aborto, muitas vezes sentimos aflorar o complexo de culpa daquelas que já o cometeram, e que já foi bem estudado pela psicologia moderna sendo identificado como uma das mais agressivas e brutais de todas as experiências traumáticas que podem acometer a mulher.
A pesquisa realizada na universidade de Oslo na Noruega e publicada em 2005[1] identificou o grande trauma psíquico para as mulheres que provocaram o aborto, e que é significativamente maior do que no grupo de mulheres que sofreram um aborto espontâneo.
Mesmo para aquelas que têm um discurso de aprovação do aborto e que não referem culpa por terem-no praticado, apresentam sinais e sintomas de trauma psicológico e sofrimento, que foi acompanhado no referido trabalho por até cinco anos. Fica como uma marca profunda a experiência do aborto devido ao sentimento de culpa que gera, impactando seu equilíbrio emocional e social.
Dito isso podemos passar a analisar a situação da seguinte maneira:
Mesmo que nos fosse possível criticar ou condenar quem quer que seja, coisa que temos a mais profunda consciência de que não podemos fazer (quem nunca pecou que atire a primeira pedra), e mesmo tendo plena consciência de que, estivéssemos nós na situação das mulheres que fizeram o aborto, talvez agíssemos da mesma forma, temos a obrigação de esclarecer, com relação ao aborto, a responsabilidade do ato e as conseqüências do mesmo para o feto abortado e para a mulher que abortou, assim como foi tão bem demonstrado na pesquisa acima citada. Portanto, não atribuímos culpa, mas lembramos a responsabilidade que leva à dor e ao sofrimento.
Sendo assim a condenação do aborto não é acompanhada da condenação das mulheres que o provocaram, mas é a ação consciente de prevenção do ato, porquanto tentamos evitar os efeitos da responsabilidade, na mesma medida em que esperamos dissipar seus complexos de culpa e mostrar-lhes que não há porque continuar mantendo a dor de um ato muitas vezes desprovido de reflexão, ou cometido devido à condução do meio ou das pessoas que os cercavam. Aos que praticaram tal ato cabe auxílio e esclarecimento, não condenação, pois apesar de responsáveis, nem sempre são culpados.
Como nos asseverou Harry Weinberger (1888–1944):
“O maior direito no mundo é o direito de errar”
Mesmos os culpados tem direito ao arrependimento e à mudança de postura.
De nada adianta deixar a ferrugem da culpa corroer nossas forças, coisa que em nada vai reparar ou reconstruir nossas vidas, é necessário sim reconhecer nossos erros para evitá-los no futuro, mas trabalhar conscientes de nossa falibilidade, e certos de nosso melhoramento.
Um Deus infinitamente bom e justo nunca poderia condenar, pois Ele, e só Ele, tem todo o conhecimento e a percepção, e por isso mesmo não condena, auxilia, não pune, esclarece, Deus ama, e por isso educa.
É hora de nos livrarmos da culpa, é hora de trabalho, não de lamentação, assim como é hora de assumirmos nossas responsabilidades, pois já somos sabedores das leis e suas conseqüências, resta trabalhar para ser feliz.
Nunca deveríamos nos esquecer do sábio Chico Xavier que lembrou certa vez:
“Não podemos mudar o início, mas podemos, a partir de hoje, construir um final mais feliz”
[1] Broen A N, Moum T, Bodtker A S, Ekeberg O: The course of mental health after miscarriage and induced abortion: a longitudinal, Five-year follow-up study. BMC Medicine 2005, 3:18.
Décio Iandoli Júnior (Santos/SP)
Prof. Dr. Décio Iandoli Jr. – Com doutorado em medicina pela UNIFESP-EPM, é professor titular da cadeira de Fisiologia nos cursos de Fisioterapia, Farmácia e Biologia da Universidade Santa Cecília (UNISANTA), responsável pela disciplina de Envelhecimento e Espiritualidade do curso de Gerontologia da UNISANTA, atual vice-presidente da Associação Médico-Espírita de Santos (AME-Santos), e autor dos livros “Fisiologia Transdimensional”, “Ser Médico e Ser Humano” e “A Reencarnação Como Lei Biológica” editados pela FE. Apresenta o programa “Ciência e Espiritualidade” pela TV Mundo Maior. E-mail:decio@movimentoespirita.org